28.11.10
23.11.10
Em tempos de Tropa de Elite 2 e violência diária
Mais uma vez não consegui criar o link de um texto da revista ComCiência, n.26, nov 2001. Diante do espanto e da atualidade, decidi ctrl+c - ctrl+v. O texto chama-se "O desafio da violência", de Gilberto Velho. Vale cada linha!
"A VIOLÊNCIA, em diversas formas, foi variável fundamental na constituição da sociedade brasileira. A ocupação européia do hoje território brasileiro foi feita mediante a destruição de centenas de culturas indígenas e da morte de milhões de ameríndios. Fosse pelo confronto direto em combate, fosse por doenças, escravidão e desorganização de sua vida social, os índios brasileiros foram, em grande parte, dizimados. Por intermédio das pesquisas de antropólogos e arqueólogos, sabe-se, atualmente, da grande diversidade e riqueza sócio-cultural dos numerosos grupos indígenas, vitimizados ao longo desse processo de colonização e expansão territorial, levado a cabo pelo Estado luso-brasileiro e por particulares.
Por outro lado, a instituição da escravidão, implicando uma dominação violenta, física e simbólica, atingiu os índios e depois, principalmente, a mão-de-obra africana que, durante quase quatro séculos, foi objeto do tráfico. Milhões de indivíduos, provindos de diferentes regiões e culturas africanas, foram trazidos para o território brasileiro, dentro de um sistema de divisão de trabalho internacional, no qual as grandes plantations, produzindo açúcar e café, entre outros, e os metais preciosos constituíram a contribuição desse lado do Atlântico Sul (Alencastro, 1979).
Inegavelmente, formou-se uma sociedade complexa e heterogênea que, a par da dimensão de exploração e iniqüidade social, apresentou extraordinárias facetas de rica interação e troca sócio-culturais. As diferentes culturas ameríndias e africanas, mesmo violentadas e fragmentadas, participaram intensamente da formação da sociedade nacional como mostraram, entre outros, Gilberto Freyre (1933) e Sérgio Buarque de Holanda (1958). A contribuição européia básica veio por meio dos portugueses, com sua ação político- administrativa expandindo e ocupando o território, trazendo também a língua e o repertório cultural católico-ibérico. Outros europeus incorporaram-se, de modos diferenciados, como os espanhóis, italianos, alemães, e diversos outros grupos étnicos. Mais tarde, a partir do início do século, chegaram os japoneses, principalmente para São Paulo. A incorporação dessas minorias foi repleta de episódios de arbitrariedade e violência, com situações de exploração e discriminação (Seyferth, 1998). Assim, a colonização mercantilista, o imperialismo, o coronelismo, o regime das oligarquias antes e depois da independência, tudo isso somado a um Estado marcado pelo autoritarismo burocrático, contribuiu decisivamente para a vertente de violência que atravessa a história do país. Sabemos, com Simmel (1964), que o conflito é inerente à vida social.
No Brasil, além de uma rotina de dominação com mecanismos conhecidos de exercício da força física como a tortura, fenômeno bastante generalizado, não são poucos os episódios ou situações de conflito com luta aberta, produzindo mortos, feridos e vítimas em geral. Limitando-nos ao Brasil independente e às conflagrações internas menciona-se, por exemplo, a Guerra dos Farrapos, a Balaiada, a Cabanagem, a Revolução Federalista, Canudos, Contestado, os movimentos de 1924 e 1932, e assim por diante.O Estado Novo e o regime militar levaram bem longe o exercício do poder de governos centrais autoritários e antidemocráticos. Mesmo em períodos democráticos, freqüentemente registram-se fatos que confirmam essa vertente. A cordialidade do homem brasileiro precisa ser relativizada e contextualizada dentro desse panorama. Se for entendida como uma manifestação de sentimentos e emoções na vida social, sem conotações necessárias de gentileza e bom trato, poder-se-ia até tentar incorporá-la como objeto de investigação de um ethos e de uma cultura nacionais. Da mesma forma, o jeitinho poderia ser analisado como parte de um repertório no qual a manipulação de poder e de relações, a corrupção e o uso da força têm papel crucial.
Portanto, a sociedade brasileira tradicional, a partir de um complexo equilíbrio de hierarquia e individualismos, desenvolveu, associado a um sistema de trocas, reciprocidade na desigualdade e patronagem, o uso da violência, mais ou menos legítimo, por parte de atores sociais bem definidos.
No entanto, o panorama atual apresenta algumas características que alteram e agravam o quadro tradicional. Por ocasião das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil não há mais como disfarçar ou tentar diminuir a gravidade do fenômeno da violência na sociedade brasileira contemporânea. Em muitas sociedades há violência. Existem guerras, conflitos étnico-religiosos e banditismo. Nem sempre as fronteiras entre essas manifestações são claras, havendo misturas de todos os tipos como na Colômbia, para ficar por perto de nós. Mas no Brasil, sem guerra civil explícita, atingimos, especialmente nas grandes cidades, com repercussões para quase todo o território nacional, uma situação na qual a criminalidade campeia com seu séquito sinistro de assassinatos, seqüestros, assaltos, roubos e tráfico de drogas e armas.
A urbanização acelerada, com o crescimento desenfreado das cidades, as fortes aspirações de consumo, em boa parte frustradas, dificuldades no mercado de trabalho e conflitos de valores são algumas variáveis que concorrem para tanto. Ninguém mais se sente seguro: nem empresas nem indivíduos. Senadores da República, ex-governadores, membros da Academia Brasileira de Letras, diplomatas, empresários e suas famílias engordam as listas de vítimas de roubo, assalto, seqüestro e, eventualmente, assassinato. Elites e classes médias têm suas casas assaltadas. O que dizer das camadas populares, secularmente vitimizadas? Nas favelas, nos conjuntos habitacionais, nas periferias, os criminosos fazem praticamente o que querem, seviciando, estuprando e matando. Não há lugar protegido. Escolas, igrejas, templos, quartéis, delegacias etc. são freqüentemente invadidos. As pessoas são humilhadas e desrespeitadas de todos os modos.
O poder público tem se mostrado, no mínimo, incapaz de enfrentar essa catástrofe. Mas, pior do que isso, é constatar que toda essa violência só pode existir com a conivência, cumplicidade e ativa participação de grupos da polícia, membros do Legislativo de todos os níveis, setores do aparelho burocrático civil e até autoridades do Judiciário. A corrupção está indissoluvelmente associada à violência, uma aumentando a outra, sendo faces da mesma moeda, como já foi dito. Esse processo não é de hoje, mas vem se acelerando nas últimas décadas, atingindo proporções assustadoras que põem em cheque o próprio Estado Nacional, à medida em que o poder público, não só não consegue mais controlar a criminalidade, mas aparece gravemente contaminado por ela. Sem dúvida a pobreza, a miséria e a iniqüidade social constituem, historicamente, campo altamente propício para a disseminação da violência. No entanto, creio que não tem sido dada a devida atenção para a dimensão moral, ética e do sistema de valores como um todo, para a compreensão desse fenômeno.
A perda de credibilidade e de referências simbólicas significativas destrói expectativas de convivência social elementares. Filósofos, pensadores e cientistas sociais das mais variadas orientações mostram como a sociedade só é viável mediante um mínimo de valores e padrões compartilhados. Por exemplo, o ataque físico a pessoas idosas já se tornou rotina no cotidiano das grandes cidades brasileiras. Em outros países com alto índice de pobreza, como a Índia, essas cenas são inimagináveis. Esse tipo de evento era, também, até pouco tempo atrás, muito raro no próprio Brasil, motivo de escândalo e indignação. Hoje banalizou-se assim como outras notícias de crueldade contra mulheres, crianças, pessoas doentes etc. Trata-se, claramente, de uma crise ético-moral.
A família, a escola e a religião não têm sido capazes, por sua vez, de resistir a essa deteriorização de valores. Na sociedade tradicional, com sua violência constitutiva, existiam mecanismos de controle social que marcaram uma moralidade básica compartilhada. Sem dúvida, continuam existindo áreas e grupos sociais que preservam e se preocupam com essas questões. Certamente a maioria das pessoas não é violenta ou corrupta. No entanto, o clima geral de impunidade incentiva a utilização de recursos e estratégias criminosas. A mídia, fundamental numa sociedade democrática, denuncia e divulga o estado de coisas, tornando pública, pelo menos, parte da atividade criminosa. Mas, em poucos casos, existe a percepção de que a denúncia tem conseqüências, aumentando a sensação de injustiça e impunidade que é, talvez, a principal causa de violência. Hospitais funcionam precariamente, o transporte público é deficiente, os salários baixos e ainda, diariamente, novos escândalos aparecem.
Enfatize-se que a solução não é a censura, como gostariam alguns. Na televisão assiste-se ao espetáculo de poderosos senadores desmoralizando-se e ao Poder Legislativo. Prefeituras e governos de estados são acusados de corrupção e conivência com o crime organizado. Um presidente da República foi afastado por corrupção mas as investigações não tiveram continuidade, não tendo sido apurada a real extensão e profundidade do saque à nação, conduzido por ele e seus aliados. Assim todo um importante movimento social foi frustrado.
Verbas são desviadas, obras superfaturadas, numa sucessão rápida e ininterrupta de fatos que agravam o quadro de desapontamento, às vezes indiferença e, muitas vezes, revolta. O que esperar diante desses exemplos de improbidade? No mínimo agrava-se a falta de confiança nos quadros dirigentes. Muitos considerarão normal e aceitável vários tipos de transgressão e, mesmo, crimes, diante do que aparece na mídia e do que vivem no cotidiano. Outros poderão reforçar sua posição de afastamento e desprezo pela esfera pública. De qualquer forma, instaura-se um clima de salve-se quem puder, no qual cada vez menos indivíduos e grupos poderão manter identidades estáveis baseadas em atitudes e comportamentos pautados pela ética religiosa ou laica.
Desenvolvem-se, inevitavelmente, soluções do tipo "justiça pelas próprias mãos", que aumentam ainda mais a violência e a insegurança. Policiais, bandidos, justiceiros e seguranças travam batalhas diárias matando e pondo em risco a segurança de toda a população. O fenômeno das "balas perdidas", expressão desses conflitos, é difícil de ser explicado para pessoas que não vivem nas cidades brasileiras. O fato de qualquer pessoa em qualquer de seus bairros estar exposta a esse tipo de perigo ilustra, de modo dramático, a intensidade da crise.
Como construir e sustentar um projeto nacional nessas circunstâncias? A sociedade civil, por si só, é insuficientemente organizada para enfrentar esses desafios e criar alternativas legítimas para o enfrentamento da violência. Só o Estado, reformado e renovado, incluindo o Legislativo e o Judiciário, poderá dispor de meios e recursos, articulado à opinião pública, para reverter essa ameaça de colapso. Estou falando, bem entendido, de regime democrático e não de ditaduras salvacionistas. Sem o apoio contínuo e vigilante da sociedade civil, o Estado corre o risco de hipertrofiar-se num autoritarismo esterilizante, como em boa parte de nosso passado.
Recentemente, as práticas de regime militar tiveram papel significativo no desenvolvimento de uma cultura da violência, com invasões de domicílio, tortura e assassinato. Tudo isso agravou a mencionada vertente que atravessa a história do país, associada ao abuso físico e à truculência em geral. Só governos democráticos, legitimados pela sociedade civil e voltados para os direitos humanos, terão alguma possibilidade de exercer, com sucesso, o poder e a força contra a criminalidade. Essa ação deve ser viabilizada por meio de instrumentos legais adequados que garantam continuidade e eficácia, sem recuos e acomodações. Qualquer que seja sua posição no espectro ideológico, todos os indivíduos e categorias sociais defrontam-se no Brasil com a ameaça da violência. Hoje um projeto capaz de mobilizar a nação passa, inevitavelmente, pelo estabelecimento de uma política efetiva de segurança pública dentro da ordem democrática. Só assim poderemos implementar e consolidar nossa precária cidadania, condição básica para o futuro da nação brasileira.
Gilberto Velho é professor titular de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Texto publicado na revista Estudos Avançados, 14(39):56-60, maio/ago.2000)
Referências bibliográficas:
ALENCASTRO, Luis Felipe de. La traite négrière et l´unité nationale bresilienne. Revue Française d´Histoire d´Outre-Mer, v. 66, n. 244-245, p. 395-419, 1979.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro, José Olimpio, 1933.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro, José Olimpio, 1958.
SEYFERTH, G. Algunas consideraciones sobre identidades étnicas y racismo en Brasil. Revista de Cultura Brasileña, Madrid, Embajada de Brasil en España, p. 69-84, marzo, 1998.
SIMMEL, Georg. Conflict and the web of group-affiliations. New York, The Free Press, 1964."
"A VIOLÊNCIA, em diversas formas, foi variável fundamental na constituição da sociedade brasileira. A ocupação européia do hoje território brasileiro foi feita mediante a destruição de centenas de culturas indígenas e da morte de milhões de ameríndios. Fosse pelo confronto direto em combate, fosse por doenças, escravidão e desorganização de sua vida social, os índios brasileiros foram, em grande parte, dizimados. Por intermédio das pesquisas de antropólogos e arqueólogos, sabe-se, atualmente, da grande diversidade e riqueza sócio-cultural dos numerosos grupos indígenas, vitimizados ao longo desse processo de colonização e expansão territorial, levado a cabo pelo Estado luso-brasileiro e por particulares.
Por outro lado, a instituição da escravidão, implicando uma dominação violenta, física e simbólica, atingiu os índios e depois, principalmente, a mão-de-obra africana que, durante quase quatro séculos, foi objeto do tráfico. Milhões de indivíduos, provindos de diferentes regiões e culturas africanas, foram trazidos para o território brasileiro, dentro de um sistema de divisão de trabalho internacional, no qual as grandes plantations, produzindo açúcar e café, entre outros, e os metais preciosos constituíram a contribuição desse lado do Atlântico Sul (Alencastro, 1979).
Inegavelmente, formou-se uma sociedade complexa e heterogênea que, a par da dimensão de exploração e iniqüidade social, apresentou extraordinárias facetas de rica interação e troca sócio-culturais. As diferentes culturas ameríndias e africanas, mesmo violentadas e fragmentadas, participaram intensamente da formação da sociedade nacional como mostraram, entre outros, Gilberto Freyre (1933) e Sérgio Buarque de Holanda (1958). A contribuição européia básica veio por meio dos portugueses, com sua ação político- administrativa expandindo e ocupando o território, trazendo também a língua e o repertório cultural católico-ibérico. Outros europeus incorporaram-se, de modos diferenciados, como os espanhóis, italianos, alemães, e diversos outros grupos étnicos. Mais tarde, a partir do início do século, chegaram os japoneses, principalmente para São Paulo. A incorporação dessas minorias foi repleta de episódios de arbitrariedade e violência, com situações de exploração e discriminação (Seyferth, 1998). Assim, a colonização mercantilista, o imperialismo, o coronelismo, o regime das oligarquias antes e depois da independência, tudo isso somado a um Estado marcado pelo autoritarismo burocrático, contribuiu decisivamente para a vertente de violência que atravessa a história do país. Sabemos, com Simmel (1964), que o conflito é inerente à vida social.
No Brasil, além de uma rotina de dominação com mecanismos conhecidos de exercício da força física como a tortura, fenômeno bastante generalizado, não são poucos os episódios ou situações de conflito com luta aberta, produzindo mortos, feridos e vítimas em geral. Limitando-nos ao Brasil independente e às conflagrações internas menciona-se, por exemplo, a Guerra dos Farrapos, a Balaiada, a Cabanagem, a Revolução Federalista, Canudos, Contestado, os movimentos de 1924 e 1932, e assim por diante.O Estado Novo e o regime militar levaram bem longe o exercício do poder de governos centrais autoritários e antidemocráticos. Mesmo em períodos democráticos, freqüentemente registram-se fatos que confirmam essa vertente. A cordialidade do homem brasileiro precisa ser relativizada e contextualizada dentro desse panorama. Se for entendida como uma manifestação de sentimentos e emoções na vida social, sem conotações necessárias de gentileza e bom trato, poder-se-ia até tentar incorporá-la como objeto de investigação de um ethos e de uma cultura nacionais. Da mesma forma, o jeitinho poderia ser analisado como parte de um repertório no qual a manipulação de poder e de relações, a corrupção e o uso da força têm papel crucial.
Portanto, a sociedade brasileira tradicional, a partir de um complexo equilíbrio de hierarquia e individualismos, desenvolveu, associado a um sistema de trocas, reciprocidade na desigualdade e patronagem, o uso da violência, mais ou menos legítimo, por parte de atores sociais bem definidos.
No entanto, o panorama atual apresenta algumas características que alteram e agravam o quadro tradicional. Por ocasião das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil não há mais como disfarçar ou tentar diminuir a gravidade do fenômeno da violência na sociedade brasileira contemporânea. Em muitas sociedades há violência. Existem guerras, conflitos étnico-religiosos e banditismo. Nem sempre as fronteiras entre essas manifestações são claras, havendo misturas de todos os tipos como na Colômbia, para ficar por perto de nós. Mas no Brasil, sem guerra civil explícita, atingimos, especialmente nas grandes cidades, com repercussões para quase todo o território nacional, uma situação na qual a criminalidade campeia com seu séquito sinistro de assassinatos, seqüestros, assaltos, roubos e tráfico de drogas e armas.
A urbanização acelerada, com o crescimento desenfreado das cidades, as fortes aspirações de consumo, em boa parte frustradas, dificuldades no mercado de trabalho e conflitos de valores são algumas variáveis que concorrem para tanto. Ninguém mais se sente seguro: nem empresas nem indivíduos. Senadores da República, ex-governadores, membros da Academia Brasileira de Letras, diplomatas, empresários e suas famílias engordam as listas de vítimas de roubo, assalto, seqüestro e, eventualmente, assassinato. Elites e classes médias têm suas casas assaltadas. O que dizer das camadas populares, secularmente vitimizadas? Nas favelas, nos conjuntos habitacionais, nas periferias, os criminosos fazem praticamente o que querem, seviciando, estuprando e matando. Não há lugar protegido. Escolas, igrejas, templos, quartéis, delegacias etc. são freqüentemente invadidos. As pessoas são humilhadas e desrespeitadas de todos os modos.
O poder público tem se mostrado, no mínimo, incapaz de enfrentar essa catástrofe. Mas, pior do que isso, é constatar que toda essa violência só pode existir com a conivência, cumplicidade e ativa participação de grupos da polícia, membros do Legislativo de todos os níveis, setores do aparelho burocrático civil e até autoridades do Judiciário. A corrupção está indissoluvelmente associada à violência, uma aumentando a outra, sendo faces da mesma moeda, como já foi dito. Esse processo não é de hoje, mas vem se acelerando nas últimas décadas, atingindo proporções assustadoras que põem em cheque o próprio Estado Nacional, à medida em que o poder público, não só não consegue mais controlar a criminalidade, mas aparece gravemente contaminado por ela. Sem dúvida a pobreza, a miséria e a iniqüidade social constituem, historicamente, campo altamente propício para a disseminação da violência. No entanto, creio que não tem sido dada a devida atenção para a dimensão moral, ética e do sistema de valores como um todo, para a compreensão desse fenômeno.
A perda de credibilidade e de referências simbólicas significativas destrói expectativas de convivência social elementares. Filósofos, pensadores e cientistas sociais das mais variadas orientações mostram como a sociedade só é viável mediante um mínimo de valores e padrões compartilhados. Por exemplo, o ataque físico a pessoas idosas já se tornou rotina no cotidiano das grandes cidades brasileiras. Em outros países com alto índice de pobreza, como a Índia, essas cenas são inimagináveis. Esse tipo de evento era, também, até pouco tempo atrás, muito raro no próprio Brasil, motivo de escândalo e indignação. Hoje banalizou-se assim como outras notícias de crueldade contra mulheres, crianças, pessoas doentes etc. Trata-se, claramente, de uma crise ético-moral.
A família, a escola e a religião não têm sido capazes, por sua vez, de resistir a essa deteriorização de valores. Na sociedade tradicional, com sua violência constitutiva, existiam mecanismos de controle social que marcaram uma moralidade básica compartilhada. Sem dúvida, continuam existindo áreas e grupos sociais que preservam e se preocupam com essas questões. Certamente a maioria das pessoas não é violenta ou corrupta. No entanto, o clima geral de impunidade incentiva a utilização de recursos e estratégias criminosas. A mídia, fundamental numa sociedade democrática, denuncia e divulga o estado de coisas, tornando pública, pelo menos, parte da atividade criminosa. Mas, em poucos casos, existe a percepção de que a denúncia tem conseqüências, aumentando a sensação de injustiça e impunidade que é, talvez, a principal causa de violência. Hospitais funcionam precariamente, o transporte público é deficiente, os salários baixos e ainda, diariamente, novos escândalos aparecem.
Enfatize-se que a solução não é a censura, como gostariam alguns. Na televisão assiste-se ao espetáculo de poderosos senadores desmoralizando-se e ao Poder Legislativo. Prefeituras e governos de estados são acusados de corrupção e conivência com o crime organizado. Um presidente da República foi afastado por corrupção mas as investigações não tiveram continuidade, não tendo sido apurada a real extensão e profundidade do saque à nação, conduzido por ele e seus aliados. Assim todo um importante movimento social foi frustrado.
Verbas são desviadas, obras superfaturadas, numa sucessão rápida e ininterrupta de fatos que agravam o quadro de desapontamento, às vezes indiferença e, muitas vezes, revolta. O que esperar diante desses exemplos de improbidade? No mínimo agrava-se a falta de confiança nos quadros dirigentes. Muitos considerarão normal e aceitável vários tipos de transgressão e, mesmo, crimes, diante do que aparece na mídia e do que vivem no cotidiano. Outros poderão reforçar sua posição de afastamento e desprezo pela esfera pública. De qualquer forma, instaura-se um clima de salve-se quem puder, no qual cada vez menos indivíduos e grupos poderão manter identidades estáveis baseadas em atitudes e comportamentos pautados pela ética religiosa ou laica.
Desenvolvem-se, inevitavelmente, soluções do tipo "justiça pelas próprias mãos", que aumentam ainda mais a violência e a insegurança. Policiais, bandidos, justiceiros e seguranças travam batalhas diárias matando e pondo em risco a segurança de toda a população. O fenômeno das "balas perdidas", expressão desses conflitos, é difícil de ser explicado para pessoas que não vivem nas cidades brasileiras. O fato de qualquer pessoa em qualquer de seus bairros estar exposta a esse tipo de perigo ilustra, de modo dramático, a intensidade da crise.
Como construir e sustentar um projeto nacional nessas circunstâncias? A sociedade civil, por si só, é insuficientemente organizada para enfrentar esses desafios e criar alternativas legítimas para o enfrentamento da violência. Só o Estado, reformado e renovado, incluindo o Legislativo e o Judiciário, poderá dispor de meios e recursos, articulado à opinião pública, para reverter essa ameaça de colapso. Estou falando, bem entendido, de regime democrático e não de ditaduras salvacionistas. Sem o apoio contínuo e vigilante da sociedade civil, o Estado corre o risco de hipertrofiar-se num autoritarismo esterilizante, como em boa parte de nosso passado.
Recentemente, as práticas de regime militar tiveram papel significativo no desenvolvimento de uma cultura da violência, com invasões de domicílio, tortura e assassinato. Tudo isso agravou a mencionada vertente que atravessa a história do país, associada ao abuso físico e à truculência em geral. Só governos democráticos, legitimados pela sociedade civil e voltados para os direitos humanos, terão alguma possibilidade de exercer, com sucesso, o poder e a força contra a criminalidade. Essa ação deve ser viabilizada por meio de instrumentos legais adequados que garantam continuidade e eficácia, sem recuos e acomodações. Qualquer que seja sua posição no espectro ideológico, todos os indivíduos e categorias sociais defrontam-se no Brasil com a ameaça da violência. Hoje um projeto capaz de mobilizar a nação passa, inevitavelmente, pelo estabelecimento de uma política efetiva de segurança pública dentro da ordem democrática. Só assim poderemos implementar e consolidar nossa precária cidadania, condição básica para o futuro da nação brasileira.
Gilberto Velho é professor titular de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Texto publicado na revista Estudos Avançados, 14(39):56-60, maio/ago.2000)
Referências bibliográficas:
ALENCASTRO, Luis Felipe de. La traite négrière et l´unité nationale bresilienne. Revue Française d´Histoire d´Outre-Mer, v. 66, n. 244-245, p. 395-419, 1979.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro, José Olimpio, 1933.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro, José Olimpio, 1958.
SEYFERTH, G. Algunas consideraciones sobre identidades étnicas y racismo en Brasil. Revista de Cultura Brasileña, Madrid, Embajada de Brasil en España, p. 69-84, marzo, 1998.
SIMMEL, Georg. Conflict and the web of group-affiliations. New York, The Free Press, 1964."
1.11.10
Versão da Cidade Partida em eleição presidencial
Não consegui baixar para colocar, mas aqui no Estadão a Cidade Partida mostra sua face das eleições. Passe o mouse e descrubra.
13.10.10
Unidade de PaPais - UPP revisitada
- Pô, MC fui barrado!
- Foi barrado? Cadê o ingresso?
- Tá aqui!
- Quem te barrou?
- Lá na porta.
...
- O que houve, Sr. Policial? Por que eles não podem entrar no baile, se estão com ingressos?
- Eu não peguei você e seus amigos fumando maconha essa semana moleque?
- Pegou...
- Eu te avisei que eu não queria mais essa porcaria por aqui, não avisei?
- Aham...
- Então, tu e seus amigos vão ficar do lado de fora de castigo.
- Pô, mas...
- Não tem mas...de castigo para pensar.
- Foi barrado? Cadê o ingresso?
- Tá aqui!
- Quem te barrou?
- Lá na porta.
...
- O que houve, Sr. Policial? Por que eles não podem entrar no baile, se estão com ingressos?
- Eu não peguei você e seus amigos fumando maconha essa semana moleque?
- Pegou...
- Eu te avisei que eu não queria mais essa porcaria por aqui, não avisei?
- Aham...
- Então, tu e seus amigos vão ficar do lado de fora de castigo.
- Pô, mas...
- Não tem mas...de castigo para pensar.
15.7.10
Amargo
Estou eu impaciente de fome diante de prateleiras, procurando um shoyu para ainda fazer a comida.
- Esse aqui é doce de leite?
- Não.
- E esse aqui é?
- ah? Não!
quatrocentos e sessenta e dois, quatrocentos e sessenta e três, quatrocentos e sessenta e quatro, cinco, seis, sete...
- E esse aqui? Aqui tamb..
Quinhentos e vinte um, dois...
- Olha, o doce de leite é esse aqui!
- Ah, obrigada! É que eu não sei ler!
ah, onde estou? como assim? o que vim fazer aqui mesmo? quem sou eu?
aline
- Esse aqui é doce de leite?
- Não.
- E esse aqui é?
- ah? Não!
quatrocentos e sessenta e dois, quatrocentos e sessenta e três, quatrocentos e sessenta e quatro, cinco, seis, sete...
- E esse aqui? Aqui tamb..
Quinhentos e vinte um, dois...
- Olha, o doce de leite é esse aqui!
- Ah, obrigada! É que eu não sei ler!
ah, onde estou? como assim? o que vim fazer aqui mesmo? quem sou eu?
aline
20.6.10
Descaso
Aqui nessa cidade é proibido ter armas de fogo, mas há transporte e trabalhadores que trazem as armas, há pontos de venda, há pessoas que adquirem, há espaços conhecidos aonde grupos de bandidos se reúnem. As balas encontram em algum momento um entre tantos corpos que transitam na cidade.
Aqui nessa cidade é proibido usar drogas, mas há fábricas e trabalhadores que processam a matéria prima, há pontos de venda, há pessoas que consomem, há espaços conhecidos aonde grupos de consumidores se reúnem. As folhas de coca ou de maconha encontram em algum momento uma entre tantas mentes que pensam a cidade.
Aqui nessa cidade é proibido soltar balões, mas há fábricas e trabalhadores de partes do balão, há pessoas que montam, há lojas que vendem, há espaços conhecidos aonde grupos de baloeiros se reúnem para soltar. O balão que chega ao céu encontra em algum momento um entre tantos morros que cercam a cidade.
Aline Gama
10.5.10
O enigma das UPPS: um texto-teste de João Ximenes Braga
"Marque uma das opções abaixo (ou crie uma de punho próprio, na caixa de comentários do blog) para responder à pergunta: por que está tão fácil expulsar o tráfico dos morros do Rio?
Um escoteiro no Morro da Formiga seria mais do que suficiente”, disse o tenente-coronel Fernando Príncipe, comandante do 6°BPM, sobre a chegada das UPPs à Tijuca. O governador criticou a declaração e Príncipe foi transferido, mas, para quem acompanhava de longe, ele parecia estar certo: a ocupação de sete morros de notória violência se passou sem um tiro. Tivesse chegado esta semana de Alfa Centauro, eu leria tal notícia com êxtase. Tendo atravessado as últimas quatro décadas no Rio de Janeiro, achei sensacional, mas estranho. Muito estranho. Todo esse tempo fui levado a crer, tanto pelos meus próprios olhos quanto por declarações de comandantes da polícia e governantes, que o armamento nas favelas mais perigosas vinha num crescendo tal que o “poder paralelo” já alcançara a superioridade na “guerra civil” carioca. Uma semana denunciavam que traficantes passavam por treinamento de guerrilha com as Farc, na outra um helicóptero era derrubado à vista de todos, ou apreendiam armas de uso exclusivo do Bruce Willis. Ou um especialista em alguma coisa dizia que a complexa topografia dos morros e o apoio da população local tornava os bandidos inatingíveis. O grande tabu, a grande guerra, a grande impossibilidade, era existir polícia no morro. E eis que, de repente, a gente descobre que um escoteiro daria conta? Como do escotismo só conheço Huguinho, Zezinho e Luisinho, penso em outras possibilidades para nos recompor da surpresa.
(A) Nunca antes foi possível fazer nada, mas agora Bangu 1 decidiu abrir caminho pacificamente por ter um fraco pela ginástica olímpica. Os chefões não queriam correr risco de o COI retirar os jogos de 2016 do Rio e perder a chance de ver ao vivo a prova de cavalo com alças. Ademais, como bons cariocas, nada os preocupa mais que a imagem da cidade no exterior. Essa é uma hipótese polêmica, eu sei. Sempre vai ter alguém para contestar e dizer que, na verdade, a galera do Comando Vermelho acompanha mesmo é o badminton.
(B) Sempre foi possível haver segurança nas favelas, mas nunca ocorreu a um governador pedir tal favor aos escoteiros — nem à polícia. E por que não? Já ouvi teorias conspiratórias em mesa de bar sobre o governador Fulano ter pacto firmado com o traficante Beltrano, ou que o governador Sicrano não agia para não perder votos nos morros. Não creio, políticos cariocas e fluminenses têm caráter impoluto, acho que são só distraídos. A vida é tão corrida, né? Ainda mais a deles, que, ano sim, ano não, vivem ocupadíssimos com eleições. Como achar tempo para organizar uma força policial e mostrar presença do Estado nas favelas? Uma vez que isso se mostra possível, porém, não custa chamar nossos ex-governadores a explicar por que não tentaram algo tão óbvio antes. Centenas de vidas de moradores do asfalto, e sobretudo do morro, teriam sido poupadas se tudo houvesse começado há quatro, oito, doze, 40 anos… Por que não uma CPI para desvendar esse mistério? Essa resposta eu sei! Porque dependeria da Alerj.
(C) Nunca antes foi possível agir contra o poder paralelo, e continua não sendo, está bom demais para ser verdade e aí tem coisa. Em ano eleitoral, novas teorias conspiratórias surgirão, algumas serão espalhadas com dolo, outras espontaneamente. E as teorias paranóicas continuarão por muito tempo: os bandidos estão se reaparelhando para contra-atacar, a violência ficará mais
dispersa ou apenas mudará de região. Estas são as hipóteses apocalípticas e pessimistas, mas como evitá-las? A ocupação do Borel foi anunciada e muitos cariocas, como eu, passaram o dia preocupados, buscando notícias sobre o número de mortos - e não houve um só tiro. Um roteirista de filme de guerra não ousaria tal reversão de expectativa, a plateia acharia inverossímil, estranho. E Sérgio Cabral, com suas declarações vagas sobre a meia dúzia de líderes do tráfico que simplesmente deixou a comunidade antes da ocupação, não ajuda a minimizar o estranhamento.
(D) Nunca antes foi possível, mas agora é. Em parte porque há um alinhamento de egos nos governos federal, estadual e municipal; todos interessados em fazer bonito diante da Copa e das Olimpíadas. E em parte porque, independentemente da inoperância vil de seus antecessores, essa ação precisava ser amadurecida por todos nós. Até bem pouco tempo, seguíamos nossa tradição colonialista e escravocrata de ignorar parte da população que crescia sem qualquer atenção do Estado. A preocupação do asfalto com o morro é recente, surgiu e cresceu quando um passou a incomodar o outro. Ao mesmo tempo, a violência nas favelas ficou tão grave que os bandidos foram perdendo o apoio dos moradores. A sociedade, (quase) toda ela, finalmente entendeu que não há segurança para um enquanto não houver para todos, e o mesmo há que se dizer de educação e saúde. É o primeiro passo para que possamos viver numa cidade mais igualitária e pacífica. Esta é a hipótese otimista e utópica, mas como evitá-la na cidade de São Jorge e São Sebastião?
(E) Nunca houve problema de violência ou poder paralelo no Rio, nada, nem uma bala perdida. Tudo invenção da mídia para favorecer São Paulo. Como não dava mais para sustentar esse teatro, criou-se outro para desfazer o anterior. Instaladas UPPs em todos os morros, a mídia vai começar a divulgar que o samba nasceu em São Paulo."
(F) Todas as opções acima.
ctrl+c - ctrl+v de O Globo, 02.05.2010
Um escoteiro no Morro da Formiga seria mais do que suficiente”, disse o tenente-coronel Fernando Príncipe, comandante do 6°BPM, sobre a chegada das UPPs à Tijuca. O governador criticou a declaração e Príncipe foi transferido, mas, para quem acompanhava de longe, ele parecia estar certo: a ocupação de sete morros de notória violência se passou sem um tiro. Tivesse chegado esta semana de Alfa Centauro, eu leria tal notícia com êxtase. Tendo atravessado as últimas quatro décadas no Rio de Janeiro, achei sensacional, mas estranho. Muito estranho. Todo esse tempo fui levado a crer, tanto pelos meus próprios olhos quanto por declarações de comandantes da polícia e governantes, que o armamento nas favelas mais perigosas vinha num crescendo tal que o “poder paralelo” já alcançara a superioridade na “guerra civil” carioca. Uma semana denunciavam que traficantes passavam por treinamento de guerrilha com as Farc, na outra um helicóptero era derrubado à vista de todos, ou apreendiam armas de uso exclusivo do Bruce Willis. Ou um especialista em alguma coisa dizia que a complexa topografia dos morros e o apoio da população local tornava os bandidos inatingíveis. O grande tabu, a grande guerra, a grande impossibilidade, era existir polícia no morro. E eis que, de repente, a gente descobre que um escoteiro daria conta? Como do escotismo só conheço Huguinho, Zezinho e Luisinho, penso em outras possibilidades para nos recompor da surpresa.
(A) Nunca antes foi possível fazer nada, mas agora Bangu 1 decidiu abrir caminho pacificamente por ter um fraco pela ginástica olímpica. Os chefões não queriam correr risco de o COI retirar os jogos de 2016 do Rio e perder a chance de ver ao vivo a prova de cavalo com alças. Ademais, como bons cariocas, nada os preocupa mais que a imagem da cidade no exterior. Essa é uma hipótese polêmica, eu sei. Sempre vai ter alguém para contestar e dizer que, na verdade, a galera do Comando Vermelho acompanha mesmo é o badminton.
(B) Sempre foi possível haver segurança nas favelas, mas nunca ocorreu a um governador pedir tal favor aos escoteiros — nem à polícia. E por que não? Já ouvi teorias conspiratórias em mesa de bar sobre o governador Fulano ter pacto firmado com o traficante Beltrano, ou que o governador Sicrano não agia para não perder votos nos morros. Não creio, políticos cariocas e fluminenses têm caráter impoluto, acho que são só distraídos. A vida é tão corrida, né? Ainda mais a deles, que, ano sim, ano não, vivem ocupadíssimos com eleições. Como achar tempo para organizar uma força policial e mostrar presença do Estado nas favelas? Uma vez que isso se mostra possível, porém, não custa chamar nossos ex-governadores a explicar por que não tentaram algo tão óbvio antes. Centenas de vidas de moradores do asfalto, e sobretudo do morro, teriam sido poupadas se tudo houvesse começado há quatro, oito, doze, 40 anos… Por que não uma CPI para desvendar esse mistério? Essa resposta eu sei! Porque dependeria da Alerj.
(C) Nunca antes foi possível agir contra o poder paralelo, e continua não sendo, está bom demais para ser verdade e aí tem coisa. Em ano eleitoral, novas teorias conspiratórias surgirão, algumas serão espalhadas com dolo, outras espontaneamente. E as teorias paranóicas continuarão por muito tempo: os bandidos estão se reaparelhando para contra-atacar, a violência ficará mais
dispersa ou apenas mudará de região. Estas são as hipóteses apocalípticas e pessimistas, mas como evitá-las? A ocupação do Borel foi anunciada e muitos cariocas, como eu, passaram o dia preocupados, buscando notícias sobre o número de mortos - e não houve um só tiro. Um roteirista de filme de guerra não ousaria tal reversão de expectativa, a plateia acharia inverossímil, estranho. E Sérgio Cabral, com suas declarações vagas sobre a meia dúzia de líderes do tráfico que simplesmente deixou a comunidade antes da ocupação, não ajuda a minimizar o estranhamento.
(D) Nunca antes foi possível, mas agora é. Em parte porque há um alinhamento de egos nos governos federal, estadual e municipal; todos interessados em fazer bonito diante da Copa e das Olimpíadas. E em parte porque, independentemente da inoperância vil de seus antecessores, essa ação precisava ser amadurecida por todos nós. Até bem pouco tempo, seguíamos nossa tradição colonialista e escravocrata de ignorar parte da população que crescia sem qualquer atenção do Estado. A preocupação do asfalto com o morro é recente, surgiu e cresceu quando um passou a incomodar o outro. Ao mesmo tempo, a violência nas favelas ficou tão grave que os bandidos foram perdendo o apoio dos moradores. A sociedade, (quase) toda ela, finalmente entendeu que não há segurança para um enquanto não houver para todos, e o mesmo há que se dizer de educação e saúde. É o primeiro passo para que possamos viver numa cidade mais igualitária e pacífica. Esta é a hipótese otimista e utópica, mas como evitá-la na cidade de São Jorge e São Sebastião?
(E) Nunca houve problema de violência ou poder paralelo no Rio, nada, nem uma bala perdida. Tudo invenção da mídia para favorecer São Paulo. Como não dava mais para sustentar esse teatro, criou-se outro para desfazer o anterior. Instaladas UPPs em todos os morros, a mídia vai começar a divulgar que o samba nasceu em São Paulo."
(F) Todas as opções acima.
ctrl+c - ctrl+v de O Globo, 02.05.2010
20.4.10
Recomendo para amantes do Rio Antigo e de uma boa música
13.4.10
Guardo a chuva
Como uma mãe, a senhora do ponto de ônibus me avisa: “Ih, a chuva apertou e pelo visto essa vai demorar a passar!”
Não demoro, puxo a corda que faz soar a campainha. Espero em pé na porta de saída. Ele grita: “Tá cheio aqui. Não dá!” Mais para frente. Novamente, ele abre a porta. Saio.
Vejo a calçada. Coloco o pé. Dou cinco passos. Subo o degrau da calçada que vejo. Quando meu pé desce, ela não está mais lá. Os meus dedos, a sandália e eu submersa no Rio. A blusa branca e a bermuda colam sobre a pele. Nada nos guarda contra a Natureza.
Ouço: “Não vai moça!” Continuo. Chego na casa que está só. Banho quente, roupa fria, comida quente e sem sobremesa durmo.
Acordo e ainda falta. Um pedaço não chegou. Telefono. Dormiu no carro e no alto de algum lugar dessa cidade. Digo: “Quando você volta?”
As ruas da cidade dormem cheias de gente e de água. A lua é cheia. Frente fria e maré alta. Penso no mar que ainda está para se revoltar.
Ligo a Tevê. Os jornalistas e políticos, baseados nas informações tardias da meteorologia, pedem para ninguém sair de casa. Nada nos guarda contra a administração pública.
Porque ainda falta um pedaço, entro no site que informa o horário da maré vazia. "10:04". “Daqui à uma hora”, penso. O café é frio. Rezo. Se ele não chega, eu não saio. Nove horas e trinta e seis minutos. Desço três andares de escada, porque os jornalistas pedem para evitar o elevador. Bombeiros e defesa civil estão pra lá de ocupados.
A calçada e a Praça estão lá. Ligo: “Volta porque a hora é essa!”
Aline Gama
Não demoro, puxo a corda que faz soar a campainha. Espero em pé na porta de saída. Ele grita: “Tá cheio aqui. Não dá!” Mais para frente. Novamente, ele abre a porta. Saio.
Vejo a calçada. Coloco o pé. Dou cinco passos. Subo o degrau da calçada que vejo. Quando meu pé desce, ela não está mais lá. Os meus dedos, a sandália e eu submersa no Rio. A blusa branca e a bermuda colam sobre a pele. Nada nos guarda contra a Natureza.
Ouço: “Não vai moça!” Continuo. Chego na casa que está só. Banho quente, roupa fria, comida quente e sem sobremesa durmo.
Acordo e ainda falta. Um pedaço não chegou. Telefono. Dormiu no carro e no alto de algum lugar dessa cidade. Digo: “Quando você volta?”
As ruas da cidade dormem cheias de gente e de água. A lua é cheia. Frente fria e maré alta. Penso no mar que ainda está para se revoltar.
Ligo a Tevê. Os jornalistas e políticos, baseados nas informações tardias da meteorologia, pedem para ninguém sair de casa. Nada nos guarda contra a administração pública.
Porque ainda falta um pedaço, entro no site que informa o horário da maré vazia. "10:04". “Daqui à uma hora”, penso. O café é frio. Rezo. Se ele não chega, eu não saio. Nove horas e trinta e seis minutos. Desço três andares de escada, porque os jornalistas pedem para evitar o elevador. Bombeiros e defesa civil estão pra lá de ocupados.
A calçada e a Praça estão lá. Ligo: “Volta porque a hora é essa!”
Aline Gama
28.2.10
7.1.10
Favela da Rocinha
Antes
- Não posso ir. Amanhã, vou ter que acordar mais cedo para trabalhar.
- Por quê? É dia de fechamento?
- Não vou ter que cobrir o gerente da agência da Rocinha. Vou pedir ao meu pai para me levar e pegar um moto-táxi.
- Hum, mas lá dentro passa ônibus. É tranquilo de ir!
- Poxa, não rola. Moto-táxi me leva até lá em cima.
- Sua agência deve ser na parte baixa. A Rocinha é um mundo! Normalmente, os comércios maiores, as agências e o correio são embaixo.
- Não vou fazer meu pai me levar lá, não é? Sabe que a agência lá é mínima? Tem segurança que coloca três pessoas para dentro, um caixa e um gerente.
- Caraca!?
- É o medo!
Depois
- E ai como foi lá na Rocinha?
- Foi tranquilaço! Uma fila enorme na porta e ninguém reclamando, impressionante! Eles já acostumaram às filas: fila de hospital, fila para inscrever filho em escola pública. (Risos).
- O que eles podem fazer? (Risos).
- Lá na minha agência em Botafogo é uma merda! O cara passa 10 minutos na fila, pega o celular e liga para o atendimento ao cliente para reclamar. Isso quando não xinga ou arma um barraco.
Aline Gama
- Não posso ir. Amanhã, vou ter que acordar mais cedo para trabalhar.
- Por quê? É dia de fechamento?
- Não vou ter que cobrir o gerente da agência da Rocinha. Vou pedir ao meu pai para me levar e pegar um moto-táxi.
- Hum, mas lá dentro passa ônibus. É tranquilo de ir!
- Poxa, não rola. Moto-táxi me leva até lá em cima.
- Sua agência deve ser na parte baixa. A Rocinha é um mundo! Normalmente, os comércios maiores, as agências e o correio são embaixo.
- Não vou fazer meu pai me levar lá, não é? Sabe que a agência lá é mínima? Tem segurança que coloca três pessoas para dentro, um caixa e um gerente.
- Caraca!?
- É o medo!
Depois
- E ai como foi lá na Rocinha?
- Foi tranquilaço! Uma fila enorme na porta e ninguém reclamando, impressionante! Eles já acostumaram às filas: fila de hospital, fila para inscrever filho em escola pública. (Risos).
- O que eles podem fazer? (Risos).
- Lá na minha agência em Botafogo é uma merda! O cara passa 10 minutos na fila, pega o celular e liga para o atendimento ao cliente para reclamar. Isso quando não xinga ou arma um barraco.
Aline Gama