O Dia do Perdão no judaísmo, como é conhecido no Brasil, aconteceu desde o anoitecer de quarta-feira até o anoitecer de ontem. A marca do anoitecer é o surgimento da primeira estrela no céu que dá início às rezas, mantras e reflexões sobre o modo de vida e o ano que começou há mais ou menos 10 dias.
Segundo a tradição judaica, a vida é uma constante batalha entre o Yétser Hatóv (o desejo de fazer as coisas certas, que é identificado com a alma) e o Yétser HaRá (a vontade de seguir os nossos desejos, vindos do ego e do corpo). O desafio de vida é sincronizar o desejo do ego com o Yétser Hatóv. A tradição ensina que no Yom Kipur o Yétser HaRá, a vontade de seguir os próprios desejos não deve prevalecer. Se o seguimos, é por força do hábito e da rotina. Durante o Yom Kipur deve acontecer, então, um processo de autoperdão pelo reconhecimento de erros e excessos. O dia dedicado às rezas, à pouca alimentação e à não-vaidade, serve para mostrar a nós mesmos que podemos viver com muito menos do que somos acostumados.
Refletindo sobre a vida no Rio de Janeiro, percebo que por costume deixo me levar pelo Yétser HaRá. Assim, peço perdão por deixar as crianças, que vendem mercadorias roubadas e mostram seu sofrimento nos sinais pedindo dinheiro, continuarem a ser - depois de desviar o olhar, subir o vidro do carro e aumentar o rádio ou conversar - crianças nos sinais da cidade a pedir uma vida melhor.
Peço perdão por achar que as calçadas e ruas esburacadas e o trânsito caótico nada tem a ver comigo, pois exerço o meu direito de ir e vir.
Peço perdão por torcer que o assalto no carro da frente não atinja os demais, escondendo rapidamente celular, dinheiro e documento na roupa, ao invés de chamar a polícia, pois temo assistir qualquer tipo de morte.
Imploro perdão por fazer parte de um grupo chamado cariocas, que aceita a violência não denunciando políticos e policiais corruptos por receber favores esporádicos, e ainda aceita a morte de meninos e meninas da linha de frente do tráfico de drogas e armas.
Perdão por continuar a viver sabendo dos restos de vestígios humanos. Nas florestas se encontra saco de biscoitos, garrafas, roupas etc. Diariamente, a irresponsável coleta de lixo não recicla todos os materiais possíveis, além das latas de alumínio, como ferro, papéis e plásticos. A cada instante, o sistema de coleta de esgoto não dá conta de tratar de toda nossa excreção de forma prévia ao lançamento em rios e mares.
Perdôo-me por amar essa cidade assim, incondicionalmente. A aceito do jeito que nós - cariocas - conseguimos fazer, mas acredito que o desejo de melhora propiciará a harmonia do Yétser HaRá com o Yétser Hatóv sincronicamente.
Shaná Tová ve chatimá tová (possas tu ser inscrito e selado para um bom ano)!
No microscópio, Aline Gama
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