O post abaixo é o e-mail que recebi de um poeta que gosto muito, Henrique Rodrigues. Respondi imediatamente após a leitura, pedindo autorização para publicação. Pensei em fazer um link para algum site com o poema de Affonso Romano de Sant'Anna, mas não encontrei. Mandei e-mail pedindo a autorização. Ele respondeu: "Claro, inda mais que o Gabeira foi quem publicou esse poema na Suécia, antes que saísse no Brasil".
O post vale cada linha, assim como a carta que está aqui.
30.10.08
Povo não pode ser o diminutivo de homem.
From: Henrique Rodrigues Pinto
Date: 2008/10/27
Subject: poesia hoje - valeu, Gabeira!
To: Aline Gama
Prezados, hoje é um dia meio triste porque o Gabeira não ganhou as eleições. Não acredito em políticos, não espero que nenhum deles conceda qualquer benefício a mim ou aos meus próximos, e nem quero. Talvez esperar a grande solução dos representantes seja até uma forma confortável de se esquivar das responsabilidades individuais, de se tentar melhorar o entorno de cada um com a vontade e o pulso de que se dispõe. Mas nesse caso foi surpreendente que alguém com uma trajetória de conquistas e uma postura política extremamente sincera pudesse chegar tão perto.
Por outro lado, Gabeira já conseguiu uma série de vitórias: afastar - pelo menos por enquanto - a ameaça Crivella e mostrar a todos que é possível fazer uma campanha sem imundiçar a cidade, azucrinar o ouvido dos outros com aqueles malditos carros de som, tentar denegrir a imagem do adversário e fazer alianças a todo custo, jogando uma pá de cal na própria história política. Assim foi o Eduardo Paes, que venceu mas pode bem receber o apelido de um supermercado que creio nem existir mais: Paes Merdonça.
(Se não me engano, foi Aristóteles quem afirmou: o homem é um ser político. Triste é constatar que nem sempre o político é um ser humano.)
Gabeira mostrou que sinceridade, transparência e delicadeza ainda têm o seu espaço. Hoje é um dia triste, mas só um pouco.
Por conta disso, vai um dos poemas políticos mais belos que já li. É longo pacas, mas vale cada verso. Abs, Henrique
Que país é este? - Affonso Romano de Sant’Anna
1.
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
– e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
– discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca de especiosa raiz? ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem
procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso
que nos impeliu a errar aqui?
Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como qualquer santo barroco
a rebuscar
no mofo dos papiros, no bolor
das pias batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se salvou com o tempo
e ao mesmo tempo
– nos trai
2.
Há 500 anos caçamos índios e operários,
Há 500 anos queimamos árvores e hereges,
Há 500 anos estupramos livros e mulheres,
Há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,
semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,
sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,
a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.
Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais.
Este é o país do descontínuo
onde nada congemina,
e somos índios perdidos
na eletrônica oficina.
Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,
o salário que nos come
e nossa sede canina,
a esperança que empareda
me a nossa fé em ruína,
nada nada congemina:
a placidez desses santos
e nossa dor peregrina,
e nesse mundo às avessas
– a cor da noite é obsclara
e a claridez vespertina.
3.
Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.
Esta é a rua em que brinquei,
a bola de meia que chutei,
a cabra-cega que encontrei,
o passa-anel que repassei,
a carniça que pulei.
Este é o país que pude
que me deram
e ao que me dei,
e é possível que por ele, imerecido,
– ainda morrerei.
4.
Minha geração se fez de terços e rosários:
– um terço se exilou
– um terço se fuzilou
– um terço desesperou
e nessa missa enganosa
– houve sangue e desamor. Por isto,
canto-o-chão mais áspero e cato-me
ao nível da emoção.
Caí de quatro
animal
sem compaixão.
Uma coisa é um país,
outra uma cicatriz.
Uma coisa é um país,
outra a abatida cerviz.
Uma coisa é um país,
outra esses duros perfis.
Deveria eu catar os que sobraram
os que se arrependeram,
os que sobreviveram em suas tocas
e num seminário de erradios ratos
suplicar:
– expliquem-me a mim
e ao meu país?
Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um
ainda preso ao dezenove
como um tonto guarani
e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco
não haverá mais país.
País:
loucura de quantos generais a cavalo
escalpelando índios nos murais,
queimando caravelas e livros
– nas fogueiras e cais,
homens gordos melosos sorrisos comensais
politicando subúrbios e arando votos
e benesses nos palanques oficiais.
Leio, releio os exegetas.
Quanto mais leio, descreio. Insisto?
Deve ser um mal do século
– se não for um mal de vista.
Já pensei: – é erro meu. Não nasci no tempo certo.
Em vez de um poeta crente
sou um profeta ateu.
Em vez da epopéia nobre,
os de meu tempo me legam
como tema
– a farsa
e o amargo riso plebeu.
5.
Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto
e sinto muito o que falo
– pois morro sempre que calo.
Minha geração se fez de lições mal-aprendidas
– e classes despreparadas
Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.
Tínhamos a “história” ao nosso lado. Muitos
maduravam um rubro outubro
outros iam ardendo um torpe
agosto.
Mas nem sempre ao verde abril
se segue a flor de maio.
Às vezes se segue o fosso
– e o roer do magro osso.
E o que era revolução outrora
agora passa à convulsão inglória.
E enquanto ardíamos a derrota como escória
e os vencedores nos palácios espocavam seus champanhas sobre a aurora
o reprovado aluno aprendia
com quantos paus se faz a derrisória estória.
Convertidos em alvo e presa da real caçada
abriu-se embandeirado
um festival de caça aos pombos
– enquanto raiava sangüínea e fresca a madrugada.
Os mais afoitos e desesperados
em vez de regressarem como eu
sobre os covardes passos,
e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos,
seguiram no horizonte uma miragem
e logo da luta
passaram
ao luto.
Vi-os lubrificando suas armas
e os vi tombados pelas ruas e grutas.
Vi-os arrebatando louros e mulheres
e serem sepultados às ocultas.
Vi-os pisando o palco da tropical tragédia
e por mais que os advertisse do inevitável final
não pude lhes poupar o sangue e o ritual.
Hoje
os que sobraram vivem em escuras
e européias alamedas, em subterrâneos
de saudade, aspirando a um chão-de-estrelas,
plangendo um violão com seu violado desejo
a colher flores em suecos cemitérios.
Talvez
todo o país seja apenas um ajuntamento
e o conseqüente aviltamento
– e uma insolvente cicatriz.
Mas este é o que me deram,
e este é o que eu lamento,
e é neste que espero
– livrar-me do meu tormento.
Meu problema, parece, é mesmo de princípio:
– do prazer e da realidade
– que eu pensava
com o tempo resolver
– mas só agrava com a idade.
Há quem se ajuste
engolindo seu fel com mel.
Eu escrevo o desajuste
vomitando no papel.
6.
Mas este é um povo bom
me pedem que repita
como um monge cenobita
enquanto me dão porrada
e me vigiam a escrita.
Sim. Este é um povo bom. Mas isto também diziam
os faraós
enquanto amassavam o barro da carne escrava.
Isso digo toda noite
enquanto me assaltam a casa,
isso digo
aos montes em desalento
enquanto recolho meu sermão ao vento.
Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem perversa e una?
Desconfio muito do povo. O povo, com razão,
– desconfia muito de mim.
Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,
mas ele não me entende
– nem eu posso convertê-lo.
A menos que suba estádios, antenas, montanhas
e com três mentiras eternas
o seduza para além da ordem moral.
Quando cruzamos pelas ruas
não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus olhos.
Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos, família
a prevenir mal-entendidos sangrentos.
Daí vejo as manchetes:
– o poeta que matou o povo
– o povo que só/çobrou ao poeta
– (ou o poeta apesar do povo?)
– Eles não vão te perdoar
– me adverte o exegeta.
Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes de ruas, questionários e geladeiras,
e a cidade do interior não é apenas gás néon, quermesse e fonte luminosa,
uma mulher também não é só capa de revista, bundas e peitos fingindo que é coisa nossa.
Povo
também são os falsários
e não apenas os operários,
povo
também são os sifilíticos
não só atletas e políticos,
povo
são as bichas, putas e artistas
e não só os escoteiros
e heróis de falsas lutas,
são as costureiras e dondocas
e os carcereiros
e os que estão nos eitos e docas.
Assim como uma religião não se faz só de missas na matriz,
mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,
a escravidão
para resgatar os ferros de seus ombros
requer
poetas negros que refaçam seus palmares e quilombos.
Um país não pode ser só a soma
de censuras redondas e quilômetros
quadrados de aventura, e o povo
não é nada novo
– é um ovo
que ora gera e degenera
que pode ser coisa viva
– ou ave torta
depende de quem o põe
– ou quem o gala.
7.
Percebo
que não sou um poeta brasileiro. Sequer
um poeta mineiro. Não há fazendas, morros,
casas velhas, barroquismos nos meus versos.
Embora meu pai viesse de Ouro Preto com bandas de música polícia militar casos de assombração e
uma calma milenar,
embora minha mãe fosse imigrando hortaliças protestantes
tecendo filhos nas fábricas e amassando a fé e o pão,
olho Minas com um amor distante,
como se eu, e não minha mulher
– fosse um poeta etíope.
Fácil não era apenas ao tempo das arcádias
entre cupidos e sanfoninhas,
fácil também era ao tempo dos partidos:
– o poeta sabia “história”
vivia em sua “célula”,
o povo era seu hobby e profissão,
o povo era seu cristo e salvação.
O povo, no entanto, é o cão
e o patrão
– o lobo. Ambos são povo.
E o povo sendo ambíguo
é o seu próprio cão e lobo.
Uma coisa é o povo, outra a fome.
Se chamais povo à malta de famintos,
se chamais povo à marcha regular das armas,
se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular
então mais amo uma manada de búfalos em Marajó
e diferença já não há
entre as formigas que devastam minha horta
e as hordas de gafanhoto de 1948
– que em carnaval de fome
o próprio povo celebrou.
Povo
não pode ser sempre o coletivo de fome.
Povo
não pode ser um séquito sem nome.
Povo
não pode ser o diminutivo de homem.
O povo, aliás,
deve estar cansado desse nome,
embora seu instinto o leve à agressão
e embora
o aumentativo de fome
possa ser
revolução.
No microscópio, Aline Gama
Date: 2008/10/27
Subject: poesia hoje - valeu, Gabeira!
To: Aline Gama
Prezados, hoje é um dia meio triste porque o Gabeira não ganhou as eleições. Não acredito em políticos, não espero que nenhum deles conceda qualquer benefício a mim ou aos meus próximos, e nem quero. Talvez esperar a grande solução dos representantes seja até uma forma confortável de se esquivar das responsabilidades individuais, de se tentar melhorar o entorno de cada um com a vontade e o pulso de que se dispõe. Mas nesse caso foi surpreendente que alguém com uma trajetória de conquistas e uma postura política extremamente sincera pudesse chegar tão perto.
Por outro lado, Gabeira já conseguiu uma série de vitórias: afastar - pelo menos por enquanto - a ameaça Crivella e mostrar a todos que é possível fazer uma campanha sem imundiçar a cidade, azucrinar o ouvido dos outros com aqueles malditos carros de som, tentar denegrir a imagem do adversário e fazer alianças a todo custo, jogando uma pá de cal na própria história política. Assim foi o Eduardo Paes, que venceu mas pode bem receber o apelido de um supermercado que creio nem existir mais: Paes Merdonça.
(Se não me engano, foi Aristóteles quem afirmou: o homem é um ser político. Triste é constatar que nem sempre o político é um ser humano.)
Gabeira mostrou que sinceridade, transparência e delicadeza ainda têm o seu espaço. Hoje é um dia triste, mas só um pouco.
Por conta disso, vai um dos poemas políticos mais belos que já li. É longo pacas, mas vale cada verso. Abs, Henrique
Que país é este? - Affonso Romano de Sant’Anna
1.
Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
– e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um “futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
– discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca de especiosa raiz? ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem
procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso
que nos impeliu a errar aqui?
Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como qualquer santo barroco
a rebuscar
no mofo dos papiros, no bolor
das pias batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se salvou com o tempo
e ao mesmo tempo
– nos trai
2.
Há 500 anos caçamos índios e operários,
Há 500 anos queimamos árvores e hereges,
Há 500 anos estupramos livros e mulheres,
Há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,
semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,
sonhamos a paz da Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,
a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas.
Este é um país de síndicos em geral,
este é um país de cínicos em geral,
este é um país de civis e generais.
Este é o país do descontínuo
onde nada congemina,
e somos índios perdidos
na eletrônica oficina.
Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,
o salário que nos come
e nossa sede canina,
a esperança que empareda
me a nossa fé em ruína,
nada nada congemina:
a placidez desses santos
e nossa dor peregrina,
e nesse mundo às avessas
– a cor da noite é obsclara
e a claridez vespertina.
3.
Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.
Esta é a rua em que brinquei,
a bola de meia que chutei,
a cabra-cega que encontrei,
o passa-anel que repassei,
a carniça que pulei.
Este é o país que pude
que me deram
e ao que me dei,
e é possível que por ele, imerecido,
– ainda morrerei.
4.
Minha geração se fez de terços e rosários:
– um terço se exilou
– um terço se fuzilou
– um terço desesperou
e nessa missa enganosa
– houve sangue e desamor. Por isto,
canto-o-chão mais áspero e cato-me
ao nível da emoção.
Caí de quatro
animal
sem compaixão.
Uma coisa é um país,
outra uma cicatriz.
Uma coisa é um país,
outra a abatida cerviz.
Uma coisa é um país,
outra esses duros perfis.
Deveria eu catar os que sobraram
os que se arrependeram,
os que sobreviveram em suas tocas
e num seminário de erradios ratos
suplicar:
– expliquem-me a mim
e ao meu país?
Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um
ainda preso ao dezenove
como um tonto guarani
e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco
não haverá mais país.
País:
loucura de quantos generais a cavalo
escalpelando índios nos murais,
queimando caravelas e livros
– nas fogueiras e cais,
homens gordos melosos sorrisos comensais
politicando subúrbios e arando votos
e benesses nos palanques oficiais.
Leio, releio os exegetas.
Quanto mais leio, descreio. Insisto?
Deve ser um mal do século
– se não for um mal de vista.
Já pensei: – é erro meu. Não nasci no tempo certo.
Em vez de um poeta crente
sou um profeta ateu.
Em vez da epopéia nobre,
os de meu tempo me legam
como tema
– a farsa
e o amargo riso plebeu.
5.
Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto
e sinto muito o que falo
– pois morro sempre que calo.
Minha geração se fez de lições mal-aprendidas
– e classes despreparadas
Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.
Tínhamos a “história” ao nosso lado. Muitos
maduravam um rubro outubro
outros iam ardendo um torpe
agosto.
Mas nem sempre ao verde abril
se segue a flor de maio.
Às vezes se segue o fosso
– e o roer do magro osso.
E o que era revolução outrora
agora passa à convulsão inglória.
E enquanto ardíamos a derrota como escória
e os vencedores nos palácios espocavam seus champanhas sobre a aurora
o reprovado aluno aprendia
com quantos paus se faz a derrisória estória.
Convertidos em alvo e presa da real caçada
abriu-se embandeirado
um festival de caça aos pombos
– enquanto raiava sangüínea e fresca a madrugada.
Os mais afoitos e desesperados
em vez de regressarem como eu
sobre os covardes passos,
e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos,
seguiram no horizonte uma miragem
e logo da luta
passaram
ao luto.
Vi-os lubrificando suas armas
e os vi tombados pelas ruas e grutas.
Vi-os arrebatando louros e mulheres
e serem sepultados às ocultas.
Vi-os pisando o palco da tropical tragédia
e por mais que os advertisse do inevitável final
não pude lhes poupar o sangue e o ritual.
Hoje
os que sobraram vivem em escuras
e européias alamedas, em subterrâneos
de saudade, aspirando a um chão-de-estrelas,
plangendo um violão com seu violado desejo
a colher flores em suecos cemitérios.
Talvez
todo o país seja apenas um ajuntamento
e o conseqüente aviltamento
– e uma insolvente cicatriz.
Mas este é o que me deram,
e este é o que eu lamento,
e é neste que espero
– livrar-me do meu tormento.
Meu problema, parece, é mesmo de princípio:
– do prazer e da realidade
– que eu pensava
com o tempo resolver
– mas só agrava com a idade.
Há quem se ajuste
engolindo seu fel com mel.
Eu escrevo o desajuste
vomitando no papel.
6.
Mas este é um povo bom
me pedem que repita
como um monge cenobita
enquanto me dão porrada
e me vigiam a escrita.
Sim. Este é um povo bom. Mas isto também diziam
os faraós
enquanto amassavam o barro da carne escrava.
Isso digo toda noite
enquanto me assaltam a casa,
isso digo
aos montes em desalento
enquanto recolho meu sermão ao vento.
Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem perversa e una?
Desconfio muito do povo. O povo, com razão,
– desconfia muito de mim.
Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,
mas ele não me entende
– nem eu posso convertê-lo.
A menos que suba estádios, antenas, montanhas
e com três mentiras eternas
o seduza para além da ordem moral.
Quando cruzamos pelas ruas
não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus olhos.
Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos, família
a prevenir mal-entendidos sangrentos.
Daí vejo as manchetes:
– o poeta que matou o povo
– o povo que só/çobrou ao poeta
– (ou o poeta apesar do povo?)
– Eles não vão te perdoar
– me adverte o exegeta.
Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes de ruas, questionários e geladeiras,
e a cidade do interior não é apenas gás néon, quermesse e fonte luminosa,
uma mulher também não é só capa de revista, bundas e peitos fingindo que é coisa nossa.
Povo
também são os falsários
e não apenas os operários,
povo
também são os sifilíticos
não só atletas e políticos,
povo
são as bichas, putas e artistas
e não só os escoteiros
e heróis de falsas lutas,
são as costureiras e dondocas
e os carcereiros
e os que estão nos eitos e docas.
Assim como uma religião não se faz só de missas na matriz,
mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,
a escravidão
para resgatar os ferros de seus ombros
requer
poetas negros que refaçam seus palmares e quilombos.
Um país não pode ser só a soma
de censuras redondas e quilômetros
quadrados de aventura, e o povo
não é nada novo
– é um ovo
que ora gera e degenera
que pode ser coisa viva
– ou ave torta
depende de quem o põe
– ou quem o gala.
7.
Percebo
que não sou um poeta brasileiro. Sequer
um poeta mineiro. Não há fazendas, morros,
casas velhas, barroquismos nos meus versos.
Embora meu pai viesse de Ouro Preto com bandas de música polícia militar casos de assombração e
uma calma milenar,
embora minha mãe fosse imigrando hortaliças protestantes
tecendo filhos nas fábricas e amassando a fé e o pão,
olho Minas com um amor distante,
como se eu, e não minha mulher
– fosse um poeta etíope.
Fácil não era apenas ao tempo das arcádias
entre cupidos e sanfoninhas,
fácil também era ao tempo dos partidos:
– o poeta sabia “história”
vivia em sua “célula”,
o povo era seu hobby e profissão,
o povo era seu cristo e salvação.
O povo, no entanto, é o cão
e o patrão
– o lobo. Ambos são povo.
E o povo sendo ambíguo
é o seu próprio cão e lobo.
Uma coisa é o povo, outra a fome.
Se chamais povo à malta de famintos,
se chamais povo à marcha regular das armas,
se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular
então mais amo uma manada de búfalos em Marajó
e diferença já não há
entre as formigas que devastam minha horta
e as hordas de gafanhoto de 1948
– que em carnaval de fome
o próprio povo celebrou.
Povo
não pode ser sempre o coletivo de fome.
Povo
não pode ser um séquito sem nome.
Povo
não pode ser o diminutivo de homem.
O povo, aliás,
deve estar cansado desse nome,
embora seu instinto o leve à agressão
e embora
o aumentativo de fome
possa ser
revolução.
No microscópio, Aline Gama
27.10.08
Apesar
"Hoje, você é quem manda. Falou, tá falado! Não tem discussão, não! A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão, viu? Você que inventou esse Estado, inventou de inventar toda escuridão. Você que inventou o pecado, esqueceu-se de inventar o perdão.
Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? Água nova brotando e a gente se amando sem parar! Quando chegar o momento esse meu sofrimento, vou cobrar com juros, juro! Todo esse amor reprimido, esse grito contido e esse samba no escuro. Você que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de desinventar! Você vai pagar e é dobrado cada lágrima rolada nesse meu penar!
Ainda pago para ver o jardim florescer qual você não queria. Você vai se amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença! Eu vou morrer de rir que esse dia há de vir antes do que você pensa! Você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia! Como vai se explicar vendo o céu clarear, de repente, impunemente? Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente. Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!
Você vai se dar mal, etc e tal!"
Do boteco, Aline Gama - Apesar de você do Chico Buarque.
Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? Água nova brotando e a gente se amando sem parar! Quando chegar o momento esse meu sofrimento, vou cobrar com juros, juro! Todo esse amor reprimido, esse grito contido e esse samba no escuro. Você que inventou a tristeza, ora tenha a fineza de desinventar! Você vai pagar e é dobrado cada lágrima rolada nesse meu penar!
Ainda pago para ver o jardim florescer qual você não queria. Você vai se amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença! Eu vou morrer de rir que esse dia há de vir antes do que você pensa! Você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia! Como vai se explicar vendo o céu clarear, de repente, impunemente? Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente. Apesar de você, amanhã há de ser outro dia!
Você vai se dar mal, etc e tal!"
Do boteco, Aline Gama - Apesar de você do Chico Buarque.
23.10.08
"Eu nasci no samba e não posso parar"
Sempre que ouço uma música dela reencontro algo em mim que na correria do dia-a-dia passa sem ser percebido. Um amor não realizado, outro perdido, outro nem sequer desejado e principalmente a cadência de uma menina de Madureira, negra e pobre, chamada Yvonne da Silva Lara. Sua primeira música “tié-tiê” foi composta com apenas 12 anos, pouco depois ela ficou órfã. Sob o cuidado dos tios, estudou em um internato onde foi aluna de canto orfeônico da mulher de Heitor Villa-Lobos, Lucília Villa-Lobos. Formou-se enfermeira e trabalhou como assistente social com a doutora Nise da Silveira.
Foi nessa complexa trajetória de vida que a menina se transformou em Dona Ivone Lara, diva do samba carioca. Ainda muito jovem em um universo predominantemente masculino e cercado pelo samba, Yvonne deu suas músicas para seu tio tocar em rodas, mentindo sobre a autoria. Durante os fins de semana e nas férias, o samba do Prazer da Serrinha e do Império Serrano encantou o ritmo da rotina de dona de casa, mãe de dois meninos e assistente social.
A história que passa por conflitos de gênero e cor, dramas familiares e pela persistência como compositora de samba é escrita e analisada pela jornalista e antropóloga Mila Burns em sua dissertação de mestrado. Apesar das particularidades, essa é também a história das muitas mulheres negras, mães, sambistas, trabalhadoras, cariocas e também brasileiras. Nela transparece questões sociais e econômicas que merecem muito se transformar em filme, livro, minissérie, novela etc.
Foi nessa complexa trajetória de vida que a menina se transformou em Dona Ivone Lara, diva do samba carioca. Ainda muito jovem em um universo predominantemente masculino e cercado pelo samba, Yvonne deu suas músicas para seu tio tocar em rodas, mentindo sobre a autoria. Durante os fins de semana e nas férias, o samba do Prazer da Serrinha e do Império Serrano encantou o ritmo da rotina de dona de casa, mãe de dois meninos e assistente social.
A história que passa por conflitos de gênero e cor, dramas familiares e pela persistência como compositora de samba é escrita e analisada pela jornalista e antropóloga Mila Burns em sua dissertação de mestrado. Apesar das particularidades, essa é também a história das muitas mulheres negras, mães, sambistas, trabalhadoras, cariocas e também brasileiras. Nela transparece questões sociais e econômicas que merecem muito se transformar em filme, livro, minissérie, novela etc.
Foto: Walter Firmo - Dona Ivone Lara para capa da Fotoptica.
Leia e ouça mais:
Burns, Mila. Nasci para sonhar e cantar. Gênero, projeto e mediação na trajetória de Dona Ivone Lara / Mila Burns. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social – UFRJ, Museu Nacional, 2006.
Alguém me avisou
Tendência
Acreditar com Nilze Carvalho
No microscópio, Aline Gama
Leia e ouça mais:
Burns, Mila. Nasci para sonhar e cantar. Gênero, projeto e mediação na trajetória de Dona Ivone Lara / Mila Burns. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social – UFRJ, Museu Nacional, 2006.
Alguém me avisou
Tendência
Acreditar com Nilze Carvalho
No microscópio, Aline Gama
20.10.08
16.10.08
Eleições 2008 – exercício
Hoje, tentei baixar para esse post o debate que aconteceu no dia 09 de outubro no jornal O Globo, mas não consegui. Pensei também em fazer uma transcrição que colocaria ambos, Gabeira e Paes, sob o microscópio, porém o texto seria longo demais e qualquer edição mostraria a minha preferência. Segue, então, o link para o vídeo: aqui ou aqui. Assim, convido-os ao difícil exercício da política!
Assistam a todo o debate e atentem para os detalhes: o tom de voz, o sentido da fala, os olhares, os gestos do corpo e a ética. Dediquem duas horas para ver e ouvir quase sem filtros, pois há o do câmera. Aconselho doses homeopáticas de 20 minutos com intervalo para beber água, dar um telefonema, checar e-mail e se alongar.
No microscópio, Aline Gama
Assistam a todo o debate e atentem para os detalhes: o tom de voz, o sentido da fala, os olhares, os gestos do corpo e a ética. Dediquem duas horas para ver e ouvir quase sem filtros, pois há o do câmera. Aconselho doses homeopáticas de 20 minutos com intervalo para beber água, dar um telefonema, checar e-mail e se alongar.
No microscópio, Aline Gama
13.10.08
Mal-acostumados
- Então, junta ali com elas para bater uma foto!
- Fica no meio! Você é aniversariante...
- Ih, estou gorda não quero sentar...
Risos
- Sorriam!
- Deixa eu ver como ficou?
- Ficou ótima...
- É ficou boa, mas essa paisagem não dá...
- Ah? É, ficou ótima!
Pego a tulipa e paro a borda sobre o meu lábio debaixo. Olho para paisagem, que não dá, enquanto viro o copo devagar. Vejo prédios brancos, amarelos, verdes, azuis, uma escola cinza, quadras de esporte, duas igrejas, casas de tijolos em morros, piscinas em coberturas, ruas, avenidas e vielas. Imagino que ela gostaria de ver montanhas cobertas de verde ou uma praia ou...
O liquido gelado e levemente amargo aos poucos refresca a minha boca. Penso que todos querem a vista para orla, mas nem todos, que a possuem, a usufruem. Respiram fundo diante do mar e pensam em como são privilegiados, segundo aqueles que enaltecem as belezas naturais do Rio de Janeiro. O fato é que vivemos em uma grande cidade. Prédios, escolas, casas e igrejas fazem parte da paisagem que aos poucos se constrói. Não é a isso que devemos nos acostumar?
- Hum, que delícia! Estupidamente gelada!
Do boteco, Aline Gama
- Fica no meio! Você é aniversariante...
- Ih, estou gorda não quero sentar...
Risos
- Sorriam!
- Deixa eu ver como ficou?
- Ficou ótima...
- É ficou boa, mas essa paisagem não dá...
- Ah? É, ficou ótima!
Pego a tulipa e paro a borda sobre o meu lábio debaixo. Olho para paisagem, que não dá, enquanto viro o copo devagar. Vejo prédios brancos, amarelos, verdes, azuis, uma escola cinza, quadras de esporte, duas igrejas, casas de tijolos em morros, piscinas em coberturas, ruas, avenidas e vielas. Imagino que ela gostaria de ver montanhas cobertas de verde ou uma praia ou...
O liquido gelado e levemente amargo aos poucos refresca a minha boca. Penso que todos querem a vista para orla, mas nem todos, que a possuem, a usufruem. Respiram fundo diante do mar e pensam em como são privilegiados, segundo aqueles que enaltecem as belezas naturais do Rio de Janeiro. O fato é que vivemos em uma grande cidade. Prédios, escolas, casas e igrejas fazem parte da paisagem que aos poucos se constrói. Não é a isso que devemos nos acostumar?
- Hum, que delícia! Estupidamente gelada!
Do boteco, Aline Gama
9.10.08
Yom Kipur à carioca
O Dia do Perdão no judaísmo, como é conhecido no Brasil, aconteceu desde o anoitecer de quarta-feira até o anoitecer de ontem. A marca do anoitecer é o surgimento da primeira estrela no céu que dá início às rezas, mantras e reflexões sobre o modo de vida e o ano que começou há mais ou menos 10 dias.
Segundo a tradição judaica, a vida é uma constante batalha entre o Yétser Hatóv (o desejo de fazer as coisas certas, que é identificado com a alma) e o Yétser HaRá (a vontade de seguir os nossos desejos, vindos do ego e do corpo). O desafio de vida é sincronizar o desejo do ego com o Yétser Hatóv. A tradição ensina que no Yom Kipur o Yétser HaRá, a vontade de seguir os próprios desejos não deve prevalecer. Se o seguimos, é por força do hábito e da rotina. Durante o Yom Kipur deve acontecer, então, um processo de autoperdão pelo reconhecimento de erros e excessos. O dia dedicado às rezas, à pouca alimentação e à não-vaidade, serve para mostrar a nós mesmos que podemos viver com muito menos do que somos acostumados.
Refletindo sobre a vida no Rio de Janeiro, percebo que por costume deixo me levar pelo Yétser HaRá. Assim, peço perdão por deixar as crianças, que vendem mercadorias roubadas e mostram seu sofrimento nos sinais pedindo dinheiro, continuarem a ser - depois de desviar o olhar, subir o vidro do carro e aumentar o rádio ou conversar - crianças nos sinais da cidade a pedir uma vida melhor.
Peço perdão por achar que as calçadas e ruas esburacadas e o trânsito caótico nada tem a ver comigo, pois exerço o meu direito de ir e vir.
Peço perdão por torcer que o assalto no carro da frente não atinja os demais, escondendo rapidamente celular, dinheiro e documento na roupa, ao invés de chamar a polícia, pois temo assistir qualquer tipo de morte.
Imploro perdão por fazer parte de um grupo chamado cariocas, que aceita a violência não denunciando políticos e policiais corruptos por receber favores esporádicos, e ainda aceita a morte de meninos e meninas da linha de frente do tráfico de drogas e armas.
Perdão por continuar a viver sabendo dos restos de vestígios humanos. Nas florestas se encontra saco de biscoitos, garrafas, roupas etc. Diariamente, a irresponsável coleta de lixo não recicla todos os materiais possíveis, além das latas de alumínio, como ferro, papéis e plásticos. A cada instante, o sistema de coleta de esgoto não dá conta de tratar de toda nossa excreção de forma prévia ao lançamento em rios e mares.
Perdôo-me por amar essa cidade assim, incondicionalmente. A aceito do jeito que nós - cariocas - conseguimos fazer, mas acredito que o desejo de melhora propiciará a harmonia do Yétser HaRá com o Yétser Hatóv sincronicamente.
Shaná Tová ve chatimá tová (possas tu ser inscrito e selado para um bom ano)!
No microscópio, Aline Gama
Segundo a tradição judaica, a vida é uma constante batalha entre o Yétser Hatóv (o desejo de fazer as coisas certas, que é identificado com a alma) e o Yétser HaRá (a vontade de seguir os nossos desejos, vindos do ego e do corpo). O desafio de vida é sincronizar o desejo do ego com o Yétser Hatóv. A tradição ensina que no Yom Kipur o Yétser HaRá, a vontade de seguir os próprios desejos não deve prevalecer. Se o seguimos, é por força do hábito e da rotina. Durante o Yom Kipur deve acontecer, então, um processo de autoperdão pelo reconhecimento de erros e excessos. O dia dedicado às rezas, à pouca alimentação e à não-vaidade, serve para mostrar a nós mesmos que podemos viver com muito menos do que somos acostumados.
Refletindo sobre a vida no Rio de Janeiro, percebo que por costume deixo me levar pelo Yétser HaRá. Assim, peço perdão por deixar as crianças, que vendem mercadorias roubadas e mostram seu sofrimento nos sinais pedindo dinheiro, continuarem a ser - depois de desviar o olhar, subir o vidro do carro e aumentar o rádio ou conversar - crianças nos sinais da cidade a pedir uma vida melhor.
Peço perdão por achar que as calçadas e ruas esburacadas e o trânsito caótico nada tem a ver comigo, pois exerço o meu direito de ir e vir.
Peço perdão por torcer que o assalto no carro da frente não atinja os demais, escondendo rapidamente celular, dinheiro e documento na roupa, ao invés de chamar a polícia, pois temo assistir qualquer tipo de morte.
Imploro perdão por fazer parte de um grupo chamado cariocas, que aceita a violência não denunciando políticos e policiais corruptos por receber favores esporádicos, e ainda aceita a morte de meninos e meninas da linha de frente do tráfico de drogas e armas.
Perdão por continuar a viver sabendo dos restos de vestígios humanos. Nas florestas se encontra saco de biscoitos, garrafas, roupas etc. Diariamente, a irresponsável coleta de lixo não recicla todos os materiais possíveis, além das latas de alumínio, como ferro, papéis e plásticos. A cada instante, o sistema de coleta de esgoto não dá conta de tratar de toda nossa excreção de forma prévia ao lançamento em rios e mares.
Perdôo-me por amar essa cidade assim, incondicionalmente. A aceito do jeito que nós - cariocas - conseguimos fazer, mas acredito que o desejo de melhora propiciará a harmonia do Yétser HaRá com o Yétser Hatóv sincronicamente.
Shaná Tová ve chatimá tová (possas tu ser inscrito e selado para um bom ano)!
No microscópio, Aline Gama
6.10.08
Rio de Janeiro em 1936, "City of Splendour"
Vi esse filme pela primeira vez ano passado. Também está no Youtube. Pensei apaixonadamente em filmar uma versão atual dos lugares e do modo de vida. Fica a sugestão para as pessoas competentes!
Do boteco, Aline Gama
2.10.08
Cheia de encantos mil...
É possível pensar que a expressão Cidade Maravilhosa foi construída aos poucos, desde a colonização, nas conversas e nas histórias que vieram da concepção de um Éden Tropical com as praias, as lagoas, as montanhas, a temperatura amena, as florestas e o seminu dos habitantes.
Na Reforma Passos, o Rio de Janeiro abre os tempos eufóricos de uma Belle Époque à moda brasileira. A cidade moderna entusiasma escritores do início do século XX. Novo urbanismo, nova paisagem, novas aspirações e inspirações possibilitam reinventar a sua nomeação, criando imagens reais e imaginárias.
Segundo algumas pesquisas, o termo foi usado primeiramente pela poetisa francesa Jeanne Catulle Mendès que visitava a cidade. O livro “La Ville Merveilleuse” reúne uma série de poesias sobre a estadia dela durante novembro de 1911. A série obedece a uma ordem que vai desde a sua chegada “Arrive dans La Baie de Guanabara” até a sua despedida da cidade “Adieu”. Todas exaltam a cidade esplendorosa, a beleza das paisagens da natureza, a luz do céu azul claro, o ar fresco e os momentos de contemplação vividos pela poetiza.
Outras pesquisas, mostram que o sinônimo de Rio de Janeiro, que virou título de marcha de carnaval e hino oficial da cidade, foi criado pelo escritor maranhense Coelho Neto quando publicou seu artigo “Os sertanejos”, no jornal “A Notícia”, em 1908. Posteriormente, Coelho Neto também publicou um livro chamado “Cidade Maravilhosa” que teve sua primeira tiragem em 1928. Na "Cidade Maravilhosa! Cidade sonho, cidade do amor" o casal do romance seria feliz. Em 1934, André filho compôs a música e a inscreveu para o concurso de marchinhas de carnaval de 1935, cantada por Aurora Miranda, que ficou em segundo lugar. A marcha vitoriosa foi "Coração Ingrato", de Nássara e Frazão, na voz de Silvio Caldas.
No entanto, em pouco tempo é a “Cidade Maravilhosa” que se torna à canção dos cariocas, tocada em momentos de alegria ou entusiasmo cívico. No dia 25 de maio de 1960, o vereador Salles Neto aprovou na Câmara a adoção da marcha de André Filho como hino oficial da cidade. No mesmo ano, contraditoriamente, o Rio de Janeiro deixa de ser a capital federal, função exercida desde 1763, que é transferida para Brasília.
A canção nos remete a beleza dos trópicos, mas temos em seu oposto os problemas humanos que nos acompanham também desde os relatos de colonizadores, nas crônicas e notícias dos jornais, na música e literatura. Há uma contraposição entre a exuberância de florestas e a ausência de civilidade da população nativa, fora dos padrões europeus.
Com o surgimento da favela, o Rio de Janeiro ganha um espaço simbólico para descrever seus problemas e dividir a cidade em duas. As primeiras construções em morros acontecem no ano de 1881! No início do século XX, a favela já é percebida como uma cidade à parte. A Reforma Passos não a inclui! Talvez por ser incipiente, possivelmente por interesses políticos e econômicos. Atravessamos mais que um século e apontamos as armas sem resolver a questão. Espero com as eleições que consigamos mudar o rumo da história que eu já contei aqui.
Leia mais:
Almeida AGd. Maravilhosa e Partida: representações do Rio de Janeiro no telejornalismo local. Saúde Pública. Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca: 2008.
Mendès JC. La Ville Merveilleuse. Paris: E. Sansot & Cie;1913.
Neto C. Cidade Maravilhosa. São Paulo: Compania Melhoramentos; 1933.
No microscópio Aline Gama
Na Reforma Passos, o Rio de Janeiro abre os tempos eufóricos de uma Belle Époque à moda brasileira. A cidade moderna entusiasma escritores do início do século XX. Novo urbanismo, nova paisagem, novas aspirações e inspirações possibilitam reinventar a sua nomeação, criando imagens reais e imaginárias.
Segundo algumas pesquisas, o termo foi usado primeiramente pela poetisa francesa Jeanne Catulle Mendès que visitava a cidade. O livro “La Ville Merveilleuse” reúne uma série de poesias sobre a estadia dela durante novembro de 1911. A série obedece a uma ordem que vai desde a sua chegada “Arrive dans La Baie de Guanabara” até a sua despedida da cidade “Adieu”. Todas exaltam a cidade esplendorosa, a beleza das paisagens da natureza, a luz do céu azul claro, o ar fresco e os momentos de contemplação vividos pela poetiza.
Outras pesquisas, mostram que o sinônimo de Rio de Janeiro, que virou título de marcha de carnaval e hino oficial da cidade, foi criado pelo escritor maranhense Coelho Neto quando publicou seu artigo “Os sertanejos”, no jornal “A Notícia”, em 1908. Posteriormente, Coelho Neto também publicou um livro chamado “Cidade Maravilhosa” que teve sua primeira tiragem em 1928. Na "Cidade Maravilhosa! Cidade sonho, cidade do amor" o casal do romance seria feliz. Em 1934, André filho compôs a música e a inscreveu para o concurso de marchinhas de carnaval de 1935, cantada por Aurora Miranda, que ficou em segundo lugar. A marcha vitoriosa foi "Coração Ingrato", de Nássara e Frazão, na voz de Silvio Caldas.
No entanto, em pouco tempo é a “Cidade Maravilhosa” que se torna à canção dos cariocas, tocada em momentos de alegria ou entusiasmo cívico. No dia 25 de maio de 1960, o vereador Salles Neto aprovou na Câmara a adoção da marcha de André Filho como hino oficial da cidade. No mesmo ano, contraditoriamente, o Rio de Janeiro deixa de ser a capital federal, função exercida desde 1763, que é transferida para Brasília.
A canção nos remete a beleza dos trópicos, mas temos em seu oposto os problemas humanos que nos acompanham também desde os relatos de colonizadores, nas crônicas e notícias dos jornais, na música e literatura. Há uma contraposição entre a exuberância de florestas e a ausência de civilidade da população nativa, fora dos padrões europeus.
Com o surgimento da favela, o Rio de Janeiro ganha um espaço simbólico para descrever seus problemas e dividir a cidade em duas. As primeiras construções em morros acontecem no ano de 1881! No início do século XX, a favela já é percebida como uma cidade à parte. A Reforma Passos não a inclui! Talvez por ser incipiente, possivelmente por interesses políticos e econômicos. Atravessamos mais que um século e apontamos as armas sem resolver a questão. Espero com as eleições que consigamos mudar o rumo da história que eu já contei aqui.
Leia mais:
Almeida AGd. Maravilhosa e Partida: representações do Rio de Janeiro no telejornalismo local. Saúde Pública. Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca: 2008.
Mendès JC. La Ville Merveilleuse. Paris: E. Sansot & Cie;1913.
Neto C. Cidade Maravilhosa. São Paulo: Compania Melhoramentos; 1933.
No microscópio Aline Gama