Pauso a leitura do difícil Tristeza da Doçura, do Marshall Sahlins, seguro o texto com uma mão e atendo o celular com a outra.
- Oi, Aline, é doutora Márcia. Você deixou um recado na minha secretária, o que aconteceu?
- Pois é, a cauterização química criou uma ferida que não quer fechar. É uma região sensível.
- É, eu sei. O que você tem em casa de pomada? Fibrase, algum cicatrizante...
- Hum, talvez fibra...- Já sei! Sabe aquele açúcar que você coloca no café?
- Açúcar do café? Hum...Sei...
- Então, você vai colocar na ferida.
- Açúcar??? Mas a ferida vai ficar doce, doutora!
- Vai e vai ficar boa!!!
- Mas doutora...
- Qualquer coisa, me liga
- Mas... Está bem.
- E as outras feridas, doutora? As feridas da alma... posso colocar açúcar em tudo? Tudo vai ficar doce e cicatrizar? Posso carregar um avião de bombeiro jogar açúcar sobre a cidade? Posso fazer da Cidade Partida uma cidade doce? Cicatrizar as feridas como se apagasse um incêndio, doutora?
Olho para o telefone e olho para o texto. Vejo o telefone, o azul da parede, o computador, a luz, os livros da estante e o texto em que se lê:
“Na Europa, entretanto, todas (as bebidas: chá, café, chocolate) passaram a ser tomadas com açúcar, desde a época de sua introdução. É como se o amargor adoçado do chá pudesse produzir, no registro dos sentidos, o tipo de mudança moral que as pessoas desejavam em sua existência terrena – ‘os dias desta nossa peregrinação”(p. 606).
Apoio o texto e o celular sobre a mesa. Levo as mãos aos olhos, afasto a cadeira para trás, me curvo, apoio os cotovelos sobre o joelho e a cabeça sobre as mãos e reescrevo-me.
Aline Gama
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