27.8.08

Como partir uma Cidade Maravilhosa

Um dos apelidos do Rio parece que foi inventado recentemente, mas no início do século XX as crônicas de Olavo Bilac já tratavam a favela como uma “cidade à parte” e a de Benjamim Costallat descrevia que “a Favela é uma cidade dentro da cidade”. O título do livro de Zuenir Ventura relata a estadia de dez meses do jornalista em Vigário Geral, que acabara de passar pela chacina de 21 pessoas, em 29 de agosto de 1993, e foi amplamente noticiada.

No livro, moradores do asfalto, artistas plásticos, antropólogos, sociólogos e ele adentram a favela para criar o movimento “Viva Rio”, ao lado de moradores que não são nem bandidos, nem criminosos e tampouco traficantes. A necessidade de justiça e de recuperação da auto–estima perdida na chacina une pessoas, apesar de morarem em locais diferentes e de, segundo Ventura, serem de partes diferentes da cidade. Na leitura, o diálogo entre as partes contradiz o título dado ao livro. A sugestão de que a “Cidade Partida”, de Zuenir Ventura, descreve uma situação de guerrilha urbana, que divide os moradores da favela e do asfalto, os pobres e os ricos, os bandidos contra a sociedade, vem de uma leitura rápida e descuidada.

Ao chamar atenção para a questão do tráfico na favela, a expressão vira apelido nos mais diversos setores da sociedade e reverbera em artigos científicos, mesas de bar e na mídia até os dias atuais. O próprio Zuenir Ventura, de vez em quando, usa a expressão para redividir a cidade que é partida entre os que não querem e os que querem pular Carnaval ou entre os que são contra ou a favor de determinado assunto.

A questão está na atribuição de valores e na demarcação territorial que aponta aonde está ou não está a diferença. Não é o epíteto, mas sim o que ele divide e denomina como favela. A nominação, como mostra a Sociologia, serve para demarcar, individualizar, agregar ou segregar. O sim, ou o não, da "Cidade Partida" depende de escalas orientadas por interesses. Escolher dizer que a favela, e conseqüentemente, os favelados são parte da cidade e como eles podem ou devem ser percebidos como tal, pela religião, cor da pele, renda, anos de estudos e tipo de trabalho é fundamental para a vida, o trabalho e as relações dos mais de 1 milhão de habitantes das 752 favelas do Rio.

Leia mais:
Almeida AGd. Maravilhosa e Partida: representações do Rio de Janeiro no telejornalismo local. Saúde Pública. Rio de Janeiro, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca: 2008.
Costallat B. A favela que eu vi. In: Costallat B Mistérios do Rio. Rio de Janeiro: H. Antunes; 1931.
Sen A. Desigualdade reexaminada. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001.
Valladares LdP. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2005.
Ventura Z. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras; 1994.
Zaluar A, Alvito M(orgs.). Um século de Favela. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas; 1998.

No microscópio, Aline Gama

24.8.08

Do outro lado do mundo

- Vamos lá, vai, vai...
gritado por Maurren Maggi para si mesmo na pista de prova.

Na mesa ao lado
- Meu irmão to de saco cheio dessa Lei Seca. Dois chopes, por favor!
- Que isso?
- Não to dirigindo, posso beber em dobro. Acabei de discutir com o taxista...
- Relaxa cara...
- Sabe qual é? Meu carro não vale mais nada.
- Como assim, Bro?
- Nunca saio para trabalhar de carro. Só fim de semana. Bebia e pegava umas gatinhas.
- hum...
- Só falta agora inventarem uma lei que proíba sexo no carro...Ai, ferrou! Quer meu carro, te pago um chope?

Do boteco, Aline Gama.

19.8.08

Ver e enxergar

Ofereço a um homem forte de 1 metro e 90 os meus olhos.

Desço do ônibus e ele me pega pelo braço. Tenho que caminhar até o hospital, para o qual já estava destinada a ir. Aviso o momento certo de atravessar a rua até que na nossa frente um bispo. Imediatamente, penso que não serei mais só nas próximas duas quadras. Tenho quase 1 metro de largura e uma inclinação a minha direita complicada demais de medir. Puxo ele para mim e aviso da árvore, das irregularidades do chão e peço para ele ir com cuidado. O carro, o cachorro, o bebê, o carrinho, o buraco, o buraco - segura firme no meu braço e mal sabe que não peso 50 quilos - o buraco, o degrau da calçada de uma casa, o jardim, o buraco, o buraco. Perdi minha visão há mais ou menos quatro meses, vejo vultos e sei diferenciar quando há sol. Fim da calçada, aviso o momento certo de atravessar a rua, o degrau. Vamos devagar de novo. Justo agora que vou me aposentar! Passei a vida toda trabalhando muito e agora não vejo nada, as minhas retinas descolaram. Aviso o momento certo de atravessar a rua, a calçada, o degrau, um, dois. É na segunda porta. Pela ladeira ou pela escada? Minha mulher está me esperando ali! São qua...um, dois, três, quatro e mais um. Sento aonde? Moça, por favor, avisa a esposa desse senhor que ele está a sua espera. Obrigado! Boa sorte na operação!

Não somos o outro e seguimos...Se ouvimos música, não ouvimos o sinal sonoro. Não temos uma calçada uniforme e nem prefeito. Não enxergamos. Não escutamos. Não percebemos. Pagamos, simplesmente pagamos, e não enxergamos.

E se essa fosse a nossa história de amor?
Depois de escolhermos caminhar juntos, teríamos que atravessar a rua. A nossa primeira discussão seria sobre algo que não podemos mudar, um bispo, juntos quase cairíamos. Assustados e mais próximos seguiríamos. As diferenças, os gostos, os outros, as escolhas, os buracos, os buracos. Fim da calçada, aviso o momento certo de atravessar a rua, o degrau. Vamos devagar de novo. O bebê, o carrinho, a vida, o jardim. Mostro a mim mesmo e a você que podemos continuar juntos. O cachorro, a casa, os outros, os buracos. Justamente agora que aprendemos a caminhar. Trabalhamos muito e agora terei que ficar sem você. O silêncio, um, dois, três, o buraco, a ausência. Não posso mais ficar a sua espera. Obrigada e boa sorte!

Sigo, simplesmente sigo...

Leia e veja mais:
Rodrigues, J. C. Uma paixão cega pelos meios visuais? ALCEU, 2005 v.6 n.11: p. 5 -18.
Sacks, O. Ver e não ver. In: Um antropólogo em Marte. São Paulo, Companhia das Letras: 2006.
Saramago, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo, Companhia das Letras: 1995.
Eu, você e todos nós, da Miranda July, de 2005, com 90 min. Original: Me and You and Everyone we Know.

No microscópio, Aline Gama

13.8.08

Um pouco de China aqui nas praças do Rio

- Gostaria de ter visto a abertura com você. Achei sem graça...
- É difícil entender a China!
- A Sônia Bridi conhece um pouco, não? Ela morou lá...
- Talvez, mas ela não falou nada de interessante...
- Hum...

[Ajudo a família a trazer estantes, mesa, geladeira, caixas e mais caixas para o novo local de moradia de frente para Afonso Pena. Vejo na praça um grupo devidamente uniformizado com calças pretas e camisas brancas escritas "Projeto Tai Chi Chuan nas Praças". À frente do grupo está um homem alto, grisalho, mais afro-descendente que eu e uma voz de trombone para acordar a vizinhança. Prometo a mim mesmo que um dia vou acordar de madrugada, colocar calça preta e blusa branca e reaprender.
Na primeira semana, terça, quarta, quinta e sexta. Eu, o despertador e a vontade estamos em conflito. Segunda a noite, separo a roupa e não acordo. Passa o primeiro mês e nada. Segunda semana do segundo mês, segunda, terça não acordo, quarta-feira, 12 de outubro de 2005, coloco sandálias e desço. Dou bom-dia ao Gonçalo e atravesso portaria e rua.
O professor olha para os meus pés. Você devia ter vindo de tênis! Pratico Tai Chi ali com eles, só que descalça. O professor questiona se machucou. Digo que não, mas... Finco meus pés e a energia da Terra e do Céu, do Sol e da Lua, que tomam o meu corpo, ao Tai Chi e sua filosofia. A medida que dou passos pelo caminho, abro o pergaminho da vida, sobrescrevendo os mesmos movimentos milenares com pés, dedos e mãos.
]

- Mais um chope?

Do boteco, Aline Gama

Juras de amor pela cidade e à cidade

Tenho ido a muitos casamentos. No último, o pai da moça estava muito emocionado. Mãos tremulas apertando as da filha, em seu belo vestido branco e buquê de flores vermelhas. Elegante e ousada. Os olhos dele cheios de lágrimas que não desceram no caminhar pelo tapete até a entrega ao noivo diante da juíza de paz. Logo ele, que sempre soube das coisas do coração, mas nunca se deixava levar por um aperto no peito ou pelo ritmo descompassado diante das coisas da vida.

Abraços apertados, beijos e afagos nunca fizeram parte das expressões do pai da moça, doutor em coração, como demonstração de carinho. Vinha dele palavras e gestos nem sempre compreendidos e muitas vezes duros, mas imbuídos do desejo absurdo e sincero de ver as meninas lutarem pela tão desejada felicidade. Estava ele ali, o pai da noiva, também realizando um sonho na Confeitaria Colombo.

Apesar das cerimônias terem rituais bastante parecidos e os números de 2006 mostrarem que só o Rio teve 27mil e 544 registros de união civil, os casamentos de hoje não são mais como muito antigamente. A recém-mocinha tinha seus dotes negociados com a família do rapaz. A infância pulava diretamente para a vida adulta da noite para o dia, em plena lua de mel. O ritual religioso era realizado em Igrejas, Capelas e Sinagogas. A comemoração dava-se na casa dos pais da moça ou em local alugado pela família que recebia as congratulações dos convidados por terem conseguido casar a filha.

Hoje, os casais trocam alianças a qualquer idade sob ou sem o rigor das Leis Divinas e dos Homens. Importa o desejo, a coragem e o amor. A Cidade Maravilhosa abre seus pontos turísticos para que ali bem perto do céu, no Morro da Urca e no Cristo Redentor; ou no Museu de Arte Moderna e em outros patrimônios históricos; ou ainda no meio da Baia de Guanabara, em plena Ilha Fiscal, existam também juras de cuidado e fidelidade nos dias vindouros, como uma prova de amor também à cidade.

Leia mais:
ARIÈS, Philippe. Historia social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
FERES-CARNEIRO, Terezinha. Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 11, n. 2, 1998.
GOMES, Isabel Cristina; PAIVA, Maria Lucia de Souza Campos. Casamento e família no século XXI: possibilidade de holding?. Psicol. estud., Maringá, v. 8, n. spe, 2003.
NORGREN, Maria de Betânia Paes et al . Satisfação conjugal em casamentos de longa duração: uma construção possível. Estud. psicol. (Natal), Natal, v. 9, n. 3, 2004.
IBGE – Cidades: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php

No microscópio, Aline Gama

11.8.08

A porta – do Rio para o Ceará

- Vai para Disney nas férias, Seu Gonçalo?
- Não, vou ao Ceará. Todo ano vou lá ver a família e minhas terrinhas...
- Vai de avião?
- De ônibus...
- Mas não é longe?
- 03 dias...
- Caramba, avião, hoje em dia, não é tão caro! Você pode parcelar...
- É que minha cidade fica a uma hora da capital e tenho que ir do aeroporto para rodoviária pegar mais um ônibus.
- De ônibus você vai direto?
- Não...
- Então, de avião é mais rápido e dá para passar mais tempo com a família...
- Ih, eu faço isso há 30 anos. O ônibus vai parando... Esse troço de avião cai, não é não?
Risos
- É verdade, avião cai...

Do boteco, Aline Gama

7.8.08

Não só de Leis

O designer Fred Gelli escreveu na coluna “O RIO da gente” que a cidade, leia-se a orla da Zona Sul, está inundada pelo lixo. Baseado nas mudanças com a Lei Seca, sugere a criação de uma lei com multas e penalidades para aqueles que sujam a cidade. Acredito nas boas intenções do rapaz e concordo que precisamos de uma cidade mais limpa.

Para reforçar seu argumento, o designer compara o Rio com a Suécia e Cingapura, que possuem leis para tais faltas, mas esquece de dizer que a população de ambos países – e não cidades - é infinitamente menor, que o nível educacional é maior e, ainda, que diferenças culturais existem. Em números de 2006, a população da Suécia é de 9,08 milhões e a de Cingapura 4,48. Ambas com 100% da população com nível secundário completo.

Só a cidade do Rio, caro Fred, tem 6 milhões de habitantes, com o percentual de 5% de analfabetos. Não preciso colocar em questão o nível educacional daqueles que chegam à graduação.

Além disso, há diferenças culturais! Na Suécia, a população tem o hábito de limpar e organizar a própria vida, porque as empregadas domésticas são caras. O governo sueco supre a população com Saúde e Educação. O espaço público lá é pensado como um bem-comum.

Então, podemos supor que a cultura do cuidado com a casa se estenda às ruas e que as leis lá devem servir para turistas?! Por falta de leis que proíbam, você também joga o lixo nas ruas e praias ou procura a lixeira mais próxima?

Precisamos, além de leis, de uma transformação do entendimento de que o público deve ficar por conta do governo. Somos responsáveis por ruas e praias que continuarão sendo nossas depois do domingo de sol e do clássico do futebol. Não precisamos só de leis, mas de uma conscientização de que o Rio é de cada um de nós.

Mais:
DaMatta, R. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
ONU - World Development Indicators database, April 2008: http://www.onu-brasil.org.br/
IBGE – Indicadores Sociais: http://www.ibge.gov.br/
Suécia: http://www.sweden.se/

Resposta ao "Cidade inundada pelo lixo", O Globo, p. 4, 05.08.2008.
No microscópio, Aline Gama