19.8.08

Ver e enxergar

Ofereço a um homem forte de 1 metro e 90 os meus olhos.

Desço do ônibus e ele me pega pelo braço. Tenho que caminhar até o hospital, para o qual já estava destinada a ir. Aviso o momento certo de atravessar a rua até que na nossa frente um bispo. Imediatamente, penso que não serei mais só nas próximas duas quadras. Tenho quase 1 metro de largura e uma inclinação a minha direita complicada demais de medir. Puxo ele para mim e aviso da árvore, das irregularidades do chão e peço para ele ir com cuidado. O carro, o cachorro, o bebê, o carrinho, o buraco, o buraco - segura firme no meu braço e mal sabe que não peso 50 quilos - o buraco, o degrau da calçada de uma casa, o jardim, o buraco, o buraco. Perdi minha visão há mais ou menos quatro meses, vejo vultos e sei diferenciar quando há sol. Fim da calçada, aviso o momento certo de atravessar a rua, o degrau. Vamos devagar de novo. Justo agora que vou me aposentar! Passei a vida toda trabalhando muito e agora não vejo nada, as minhas retinas descolaram. Aviso o momento certo de atravessar a rua, a calçada, o degrau, um, dois. É na segunda porta. Pela ladeira ou pela escada? Minha mulher está me esperando ali! São qua...um, dois, três, quatro e mais um. Sento aonde? Moça, por favor, avisa a esposa desse senhor que ele está a sua espera. Obrigado! Boa sorte na operação!

Não somos o outro e seguimos...Se ouvimos música, não ouvimos o sinal sonoro. Não temos uma calçada uniforme e nem prefeito. Não enxergamos. Não escutamos. Não percebemos. Pagamos, simplesmente pagamos, e não enxergamos.

E se essa fosse a nossa história de amor?
Depois de escolhermos caminhar juntos, teríamos que atravessar a rua. A nossa primeira discussão seria sobre algo que não podemos mudar, um bispo, juntos quase cairíamos. Assustados e mais próximos seguiríamos. As diferenças, os gostos, os outros, as escolhas, os buracos, os buracos. Fim da calçada, aviso o momento certo de atravessar a rua, o degrau. Vamos devagar de novo. O bebê, o carrinho, a vida, o jardim. Mostro a mim mesmo e a você que podemos continuar juntos. O cachorro, a casa, os outros, os buracos. Justamente agora que aprendemos a caminhar. Trabalhamos muito e agora terei que ficar sem você. O silêncio, um, dois, três, o buraco, a ausência. Não posso mais ficar a sua espera. Obrigada e boa sorte!

Sigo, simplesmente sigo...

Leia e veja mais:
Rodrigues, J. C. Uma paixão cega pelos meios visuais? ALCEU, 2005 v.6 n.11: p. 5 -18.
Sacks, O. Ver e não ver. In: Um antropólogo em Marte. São Paulo, Companhia das Letras: 2006.
Saramago, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo, Companhia das Letras: 1995.
Eu, você e todos nós, da Miranda July, de 2005, com 90 min. Original: Me and You and Everyone we Know.

No microscópio, Aline Gama

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